Como vemos o mundo?

O modo como vemos o mundo deve ter centralidade se quisermos agir como ativistas radicais. Nós criamos o mundo a partir de como o enxergamos. Perceber o quê e como enxergamos é tarefa indispensável em direção à construção de um mundo viável.

Este é o quarto texto de uma sequência de cinco artigos que nos convoca a assumir o papel de ativistas radicais a serviço da construção de um mundo possível. A sequência é: Nós somos aqueles por quem esperávamos, O paradoxo do ativismo conservador, O ativismo radical, Como vemos o mundo? e Como as mudanças acontecem?. Acompanhe e assuma a sua identidade enquanto agente de transformação neste mundo em transição.

Coisas versus significados

Apesar da ciência ocidental reivindicar para si o lugar de autoridade sobre a realidade das coisas, o ser humano não vê coisas, mas significados. A todo o momento levamos o nosso pensamento a criar o que achamos que estamos enxergando como a percepção pura das coisas. E enxergar sentido ou significado é diferente de ver coisas. O significado vive entre a percepção pura que os sentidos alcançam e o reconhecimento da mesma.

Nós vivemos em um mundo de significados e atribuímos significado ao mundo. A maneira como a humanidade apreende os fenômenos da vida é organizando, através da atividade do pensamento, as informações que chegam pelos sentidos. O mundo, consequentemente, vive entre nós e o que parece estar lá fora. Ele surge da conversa entre a experiência e a atribuição de sentido. Criamos o mundo através do sentido que atribuímos a ele.

Esse entendimento é tangível quando reconhecemos que nossos conceitos informam aquilo que vemos ao mesmo tempo em que aquilo que vemos elucida nossos conceitos. Trazemos algo para o mundo e ele nos traz algo de volta. Através dessa relação nós e o mundo somos ampliados. Assim, a separação entre o eu e o mundo é impossível. A maneira como enxergamos o mundo é tanto subjetiva quanto objetiva porque participamos daquilo que é visto. Ou seja, participamos do surgimento do mundo a partir de como o vemos.

O que é real não é mundo que existe lá fora, objetivamente, como a ciência pautada na separação entre sujeito e objeto, proclamou. O que é real é a conversa que acontece, a todo instante, entre o interno e o externo, entre o eu e o mundo.

Portanto, o modo como enxergamos é extremamente importante já que ele diz respeito, diretamente, ao mundo que criamos através desse enxergar. No entanto, a única coisa que não enxergamos quando olhamos para o mundo é o modo como o vemos, a lente através da qual enxergamos.

Consequentemente, herdamos um mundo que nos foi dado pela lente de outros – pelos nossos ancestrais, pela ciência moderna, pelo paradigma colonial – em vez de ver o mundo que está sendo criado através da nossa participação intencional a cada momento.

O eu e o mundo são inseparáveis

Ao assumirmos a inseparabilidade entre o modo como enxergo o mundo e a própria realidade do mundo nos aproximamos do ativismo radical.

Esse entendimento se concretiza ao combinarmos a intenção de mudar o mundo estando aberto à possibilidade de ser mudado pelo mundo. Ou seja, quando assumimos que o mundo surge através de nós e da mudança que nele promovemos através da nossa mudança de olhar na mesma medida em que nós surgimos, transformados, através do mundo.

Quando a separação entre o eu e o mundo torna-se impossível, nós entramos no mundo de modo que nos descobrimos idênticos a ele. Descobrimos que o que queremos mudar no mundo é aquilo que o mundo nos convida a mudarmos em nós através da nosso ativismo. Isso acontece justamente porque aceitamos que não existe outro mundo além da delicada reciprocidade que emerge da nossa inevitável relação com ele.

A busca pela essência do fenômeno

Para uma intervenção apropriada em direção à transformação de um contexto, além de sustentar abertura para ser mudado pelo mundo enquanto se busca mudá-lo e de se reconhecer idêntico àquilo que se quer transformar, precisamos deixar de lado as explicações já conhecidas sobre um fenômeno e ir em busca de sua essência.

Buscar a essência de um fenômeno dispensando o que já se conhece a seu respeito promove uma mudança de olhar tanto porque traz novas informações como porque pressupõe uma mudança no modo de ver a si mesmo.

E por que mudamos o modo de nos ver ao buscarmos a essência de um fenômeno?

Só conseguimos buscar a essência de algo, com atenção e abertura genuínas, quando assumimos que não sabemos o suficiente e que ela só nos pode ser revelada quando nos aproximamos com uma postura curiosamente gentil. É essa qualidade delicada da busca pelo entendimento de um fenômeno que cria as condições para que possamos compreendê-lo e buscarmos a forma mais apropriada de nele intervir.

Tomar o fenômeno como fonte primária de informação e se aproximar dele com respeito, delicadeza e abertura aceitando, inclusive, que talvez ele não se revele a nós é diametralmente oposto da forma como a ciência moderna entende que o conhecimento deve ser atingido.

Na ciência ocidental moderna vigora o hábito da previsão e do controle quase sempre levando a realidade a se encaixar em elucubrações pré-definidas. Todavia, buscar a essência do fenômeno assumindo a insuficiência do nosso saber é, propriamente, o que gera abertura genuína para conhecer mais e melhor.

A mudança do modo de se ver sugerida por esta abordagem fenomenológica é a da “previsão” e “controle” para a “surpresa” e “amor”. Quando prestamos atenção àquilo que é visto, em si mesmo, entramos no campo do amor e nos permitimos ser surpreendidos. Nós nos transformamos em um amante em busca da revelação do amado independente dele ser um sujeito, uma comunidade, uma organização, uma paisagem etc.

A qualidade de presença que sustentamos quando estamos buscando essa revelação é o que permite que ela aconteça. Neste momento estamos plenamente presentes, com cabeça, coração e vontade abertos. Estamos inteiros porque estamos conscientes de nós mesmos e atentos àquilo que nos cerca de modo que a fronteira entre um e outro se torna permeável.

Buscando a essência a respeito de “o que é” algo exercitamos as faculdades que nos permitem re-entrar no mundo do qual fomos separados. Nesse estado, nos parecemos com uma parteira que está genuinamente torcendo e trabalhando para que algo novo venha a ser.

O modo como o mundo é visto e o ativismo radical

O ativista radical sabe que o modo como se vê o mundo vai se tornar o mundo que se vê. Ele entende que o mundo que surge a partir da conversa entre o que ele faz e como o mundo se revela é, propriamente, o mundo real. Ou seja, o modo como pensamos afeta e muda o mundo que enxergamos porque o mundo se torna o modo como o vemos. Entender isso é fundamental porque todas as nossas ações estão fundamentadas no modo como pensamos.  

Por isso, o ativismo radical considera essa conversa a sua atividade central. Sem preguiça nem hipocrisia, ele é capaz de interiorizar as máximas: “o que eu sou é aquilo em que o mundo se transformará” e “é como vejo que transforma mais do que aquilo que proclamo”.

Nesse sentido, uma nova atitude humana que incorpore nossos potenciais únicos – consciência auto-reflexiva, auto-responsabilização e engajamento – envolve assumir que o modo como vemos o mundo tem um maior potencial de transformá-lo do que qualquer ação notória que possamos empreender.

Otto Scharmer, idealizador de uma abordagem para inovação social, diz que apesar de nossas boas intenções, não estamos produzindo os resultados que queremos no mundo porque a qualidade da nossa presença e atenção frente ao mundo está aquém daquelas que as transformações sociais carecem.

O problema não é o que fazemos. Temos boa vontade, boas intenções e fazemos boas coisas. O problema está na qualidade da nossa presença e atenção no momento da intervenção que nos leva, comumente, a criar resultados diferentes dos que gostaríamos.

É a mudança no modo de nos apresentarmos às situações e de enxergá-las – possível apenas quando estamos presentes e gentilmente curiosos sobre o que se passa à nossa volta – que leva à mudança no nosso modo de agir que, por sua vez, conduz mudanças coerentes com a transformação que queremos fazer e que o mundo precisa.

Enxergar o nosso próprio jeito de estar, ver, escutar e pensar como as verdadeiras fontes de mudança é a proposta do ativismo radical. Para praticá-lo precisamos levar a sério a nossa participação no surgimento do mundo.

Este texto foi inspirado pelas reflexões de Allan Kaplan e Sue Davidoff presentes no livro “O ativismo delicado”. O que está sendo chamado aqui de ativismo radical foi nomeado por eles, originalmente, como ativismo delicado. A centralidade da “forma como vemos o mundo” para a prática do ativismo radical tal como tratado aqui é uma tradução pessoal do modo como esta questão é abordada no livro citado.

Referências

Allan Kaplan e Sue Davidoff (2014). O Ativismo Delicado. The Proteus Initiative.

Otto Scharmer (2009). Theory U: Leading from the Future as It Emerges. Presencing Institute.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

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