Por todo o mundo as pessoas concordam que a civilização moderna está falida e que enfrentamos enormes desafios que nos exigem uma profunda mudança pessoal e social. Provavelmente não concordamos em relação às soluções, mas concordamos sobre os problemas. Podemos resumir os problemas do mundo em três cenários: a separação ecológica, a separação social e a separação espiritual ou psicológica¹.
A separação social
A separação social é bem conhecida por todos nós. Invariavelmente nos deparamos com as suas consequências em nosso cotidiano. Ela diz respeito aos níveis crescentes de desigualdade, injustiça e tensões sociais.
Enquanto 1,5 é o número que define a separação ecológica porque representa a pegada ecológica da humanidade no planeta, 8 é um dos números que define a separação social. Hoje, 8 bilionários possuem tanta riqueza quanto as 3,6 bilhões de pessoas que compõem a metade mais pobre do planeta. Também é verdade que a riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial equivale à riqueza dos 99% restantes. Estes números são parte de um relatório da Oxfam — ONG britânica anti-pobreza — baseado em dados da revista de negócios Forbes e no relatório do banco Credit Suisse sobre distribuição da riqueza global.
3,4 é mais um dos números que retrata a separação social. De acordo com o relatório bienal do Banco Mundial sobre Pobreza e Prosperidade Compartilhada, 3,4 bilhões de pessoas lutam para satisfazer suas necessidades básicas. Esse número engloba as pessoas que vivem com menos de, aproximadamente, 12 reais por dia em países de renda média-baixa e aquelas que vivem com menos de, aproximadamente, 20 reais em países de renda média-alta. Viver com menos de 12 reais em países “pobres” e menos de 20 reais em países “ricos” denota a quantidade de pessoas abaixo da linha da pobreza — quase metade da população mundial.
Embora haja muitas tentativas bem-sucedidas de tirar as pessoas da pobreza, esses números não mudaram nos últimos anos. E enquanto se assiste à manutenção da situação de vulnerabilidade social extrema, há uma crescente polarização na sociedade. O cenário não está melhorando.
De acordo com dados da Globo News, no Brasil, entre 2011 e 2015, houve mais mortes violentas do que na Síria em guerra civil. 278.839 pessoas foram mortas no Brasil “sem guerra” enquanto 256.124 pessoas morreram na Síria desde o acirramento da guerra civil. No Brasil, este número equivale a quase 200 assassinatos por dia. O El País anunciou que entre 2001 e 2015 houve 786.870 homicídios no Brasil dentre os quais 70% foram causados por arma de fogo e contra jovens negros. O Brasil, com 210 milhões de habitantes, é o país que mais mata no século XXI.
As origens da separação social
No Brasil e no mundo, o recrudescimento da violência é uma resposta ao paradigma colonial violentamente estabelecido e consolidado como a ordem mundial de poder. A globalização em curso é resultado de um processo que começou com a colonização européia das Américas e com o avanço do capitalismo como o padrão mundial de exercício do poder e da governança.
As origens coloniais da separação social na América Latina
A sociedade moderna nasce e se consolida a partir da separação entre matéria e energia, corpo e alma, natureza e cultura. No renascimento científico do século XV, o pensamento cartesiano propôs o dualismo psicofísico em que a razão humana aparece distinta e superior à materialidade corpórea. No mesmo contexto, a física newtoniana reduziu a complexidade do mundo a leis físicas que podem ser entendidas e dominadas. Com esse pano de fundo científico, os estados modernos europeus se constituíram e avançaram na colonização mercantil do mundo.
A Europa reivindicou o título de centro hegemônico global a partir da suposta superioridade do seu modo de ser, pensar e agir no mundo. Os europeus se consideraram o único povo devidamente civilizado, assumiram a ciência ocidental como a única fonte legítima de conhecimento e tomaram a exploração predatória da natureza como a forma mais adequada de proceder no mundo. Em consequência, relegaram os povos indígenas à condição de bárbaros, deslegitimaram seus sistemas de conhecimentos e tomaram como primitivo seu modo de relacionar com a natureza.
Assim se deu a construção de muitos dos problemas que enfrentamos hoje. Desde a constituição dos estados modernos europeus, a separação entre “eu” e o “outro” e a dominação sobre aquilo que é diferente de “mim” ou de “nós” esteve presente.
A título de exemplo, a colonização da América Latina pela Europa aconteceu através da produção européia de identidades que serviam para separar e subjugar as pessoas. Os europeus reduziram as inúmeras etnias com suas culturas superdiversas às categorias simplistas de “índios” e “negros”. E ainda criaram a noção de raça, no contexto da ciência moderna, para legitimar as relações de desigualdade e exploração que estabeleceram com estes povos.
Reivindicando para si a condição de sujeitos racionais em oposição à selvageria dos povos originários, forjaram, na dimensão do saber, o “privilégio epistêmico” dos brancos. Este é o termo usado por Walter Mignolo, uma das figuras centrais do pensamento decolonial latino-americano, para explicar como e porque a ciência ocidental e a cosmologia cristã foram consideradas superiores em relação aos sistemas de conhecimento tradicionais e às cosmologias nativas.
Explicando o mundo pelas lentes da cosmologia cristã, da filosofia cartesiana e da física newtoniana produziu-se o racismo epistêmico vigente que supervaloriza a ciência ocidental moderna e massacra as línguas, sistemas de conhecimento e formas outras de apreender o mundo. Desde então produzir conhecimentos e soluções para os problemas que se apresentam parece ser privilégio de poucos indivíduos “iluminados” que tem uma determinada origem e identidade — a ocidental moderna.
Fomos acostumados a reverenciar os métodos da ciência convencional e a subvalorizar as sabedorias ancestrais. Associamos a credibilidade do conhecimento ao lugar em que ele é produzido. Comumente buscamos autores europeus ou norte-americanos como referências e quase nunca nos inspiramos nas sabedorias presentes na literatura africana ou na biblioteca viva que são os xamãs indígenas. Assim, nos tornamos reféns e cúmplices de uma geopolítica do conhecimento racista e ignorante.
Os europeus acreditavam ter uma capacidade especial de pensar. E por isso acreditavam ser o ápice da evolução humana. Isto foi exposto na máxima “penso, logo existo”. Desde o início da modernidade com a abordagem reducionista da ciência, conhecer esteve associado a dominar. Para conhecer algo era preciso fragmentar e dominar o objeto de conhecimento. Por trás do “penso, logo existo” existe “conquisto, logo penso” e, portanto, “conquisto, logo existo”.
Consequentemente, aqueles que foram considerados incapazes de pensar como os europeus tiveram suas existências consideradas dispensáveis. Tanto a natureza quanto os povos indígenas foram considerados sem razão, inteligência, intencionalidade. E, por isso, considerados objetos de conhecimento, exploração e dominação.
Em síntese, a relação dicotômica estabelecida entre mente e corpo, civilizado e selvagem, cultura e natureza etc. serviu como modelo justificador das relações entre colonizador e colonizado. E serve ainda hoje, de maneira efetiva e concreta, para justificar a colonialidade que marca a relação de dominação entre “eu” e o “outro” e entre “eu” e a “natureza”, pois, apesar do fim colonialismos de estado, continuamos reproduzindo um modo de ser colonial.
Para Maldonado-Torres, professor da Universidade de Rutgers e presidente da Associação Caribenha de Filosofía, a mentalidade colonial não aceita o outro e lhe impõe mecanismos de assimilação ou extermínio. Esse modo de ser se concretiza na normalização de práticas de invisibilidade e desumanização em que o outro não tem sua dignidade reconhecida e, muitas vezes, lhe é negada a própria possibilidade de existir. Esse modo de ser está naturalizado na visão de mundo moderna e incorporado na nossa subjetividade. Esta é a razão antiga e pouco discutida do porque a desigualdade social e a violência persistem e crescem no mundo hoje.
Boaventura Sousa Santos, professor catedrático da Universidade de Coimbra, lamenta que só hoje estamos a reconhecer que pouco vale o conhecimento limitado da ciência ocidental diante a percepção tardia de que a experiência cultural do mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica confere credibilidade. Esta riqueza e abundância social estão sendo desperdiçadas. Para combater o desperdício da experiência humana é preciso tornar visível a diversidade de experiências do mundo e lhes conferir credibilidade.
Para saber mais sobre a construção do modo de ser colonial e sobre o que estamos fazendo hoje para superá-lo, acesse aqui.
[Este texto é parte do material de apoio da jornada Em busca da visão – propósito pessoal a serviço de Gaia]
Notas
¹O entendimento destas três separações enquanto síntese do status do mundo é parte da Teoria U, um método para gerenciar mudanças e inovação social, encabeçado por Otto Scharmer, professor senior no Massachusetts Institute of Technology.
Referências
Boaventura Sousa Santos (2010). A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo, SP: Cortez.
Nelson Maldonado-Torres (2007). Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores.
Walter Mignolo (2003). Histórias locais, projetos globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG.
[…] Este nível de sintomas inclui uma paisagem de patologias definida pelas separações ecológica, social e espiritual. Essas três separações são como três pontas diferentes de um enorme iceberg que […]