Saúde, liberdade e autoconsciência (e fenomenologia)

Foto: Ahmad Odeh

 

“A nossa mais elevada tarefa deve ser a de formar seres humanos livres que sejam capazes de, por si mesmos, encontrar propósito e direção para suas vidas.” — Rudolf Steiner

Essa é uma célebre frase de Rudolf Steiner que traduz sua filosofia da liberdade.

Para a Antroposofia, ciência espiritual iniciada por Steiner, é de extrema importância que os seres humanos se desenvolvam através da (e em direção à) liberdade, e que todo o processo de desenvolvimento humano facilitado pelos pais, educadores e demais profissionais da área contribua para isso.

Realizar um Eu livre no mundo significa experienciar o amadurecimento biológico, psicológico e espiritual sendo capaz de transformar os desafios biográficos de forma autêntica por um Eu que traz consigo uma vocação singular e se manifesta por meio da autoconsciência.

Nesse sentido, liberdade tem a ver com a atuação comprometida deste Eu na metaformose daquilo que constitui o indivíduo mas que, de alguma forma, impede a expressão autêntica da sua individualidade. Vamos aprofundar nisso.

Quando nascemos herdamos um corpo dos ancestrais carregado de impressões emocionais e comportamentais. Ao longo da primeira infância, as necessidades de vínculo afetivo e de expressão espontânea da criança, se não cuidadas apropriadamente, são permeadas por traumas que mais tarde impedem que nos envolvamos com a vida plenamente.

Com o avançar da idade, durante a fase escolar, regras de conduta e crenças sobre o mundo nos são transmitidas por figuras cuja autoridade nem sempre inspira coerência e integridade. Em ambientes enrijecidos por diretrizes normativas destituídas de real significado, a nossa personalidade vai se constituindo e assumindo papéis e máscaras que no momento parecem capazes de nos trazer afeto, poder e liberdade.

Mas a verdadeira liberdade pressupõe metamorfosear as heranças ancestrais, as feridas emocionais e os papéis sociais construídos como medida de proteção do indivíduo que, dadas aquelas condições contextuais, não pôde confiar na bondade, beleza e verdade do mundo. Trata-se de transformar de forma autoconsciente modos de pensar, sentir e agir desatualizados que comprometem a saúde e o senso de realização. Como se dá esse processo?

Toda doença é uma biografia condensada

Steiner disse que “toda doença é uma biografia condensada”. Isso nos leva a entender tanto sintomas físicos e psicológicos quanto eventos conflituosos e momentos de crise — tudo aquilo que é sintomático de desequilíbrio — como desfechos de uma história que, incompreendida no nível da consciência, penetrou a corporeidade e o mundo da matéria.

Assim, o que se expressa na realidade concreta pode ser entendido como a culminância de um processo que acontecia nas dimensões mais sutis do ser humano e, permanecendo invisível à consciência, não pôde ser elaborado na psique até que se revelasse na concretude da vida.

É como se um conteúdo constituído de imagens congeladas, conclusões equivocadas e sensações incompreendidas de repente precipitasse na forma de acontecimentos importantes. Quando algo acontece e nos arrebata, quer dizer então que um processo em nossa vida atingiu seu ponto de saturação. Neste estado, agora sólido e visível, é mais provável que apareça à luz da consciência, e que o processo como um todo que o originou seja percebido, compreendido e metamorfoseado.

Para a Antroposofia, a relação do Eu com o mundo é entretecida de tal forma que este Eu, contextualizado em uma biografia singular regida por leis de desenvolvimento, em parceria com a vida, é apresentado a experiências que o provoca a conhecer mais sobre si e a atualizar seus próprios termos de relacionamento com o mundo.

A saúde é, nesse sentido, uma propriedade que emerge da participação autoconsciente do Eu no mundo que, através da liberdade, encontra os meios apropriados de se desenvolver e de contribuir com o desenvolvimento da humanidade e com a saúde planetária. Saúde e vitalidade estão presentes tanto mais uma individualidade é capaz de se expressar a partir de um impulso livre e fraterno, percebendo como ela mesma percebe o mundo e ajustando a sua conduta aos seus valores e ideais.

A precipitação de um desequilíbrio é, portanto, um convite para exercitar a autoconsciência e buscar nos eventos cotidianos a essência daquilo que é apresentado ao Eu para que ele compreenda e transforme. Quanto mais o Eu se debruça e reflete sobre a qualidade das relações através das quais se envolve com a vida (na relação consigo, com os outros, com seu entorno), mais ele afina a si mesmo como dançarino desta dança.

Convite para aumentar a percepção

Então, na medida em que crescem desconfortos (talvez ainda insignificantes) é o momento de nos lançarmos à pergunta “o que está se precipitando através desta situação?” e nos rendermos ao processo de viver a investigação desse fenômeno. O pré-requisito para que ele seja bem-sucedido é a reverência à verdade.

Não se trata aqui de uma verdade absoluta e intocada, mas do reconhecimento de que algo realmente essencial busca ser alcançado pela nossa consciência através da nossa disposição em nos interessar e relacionar com isso. Esse reconhecimento curioso é o que nos nutre enquanto persistimos pelos caminhos e encruzilhadas que nos levam de um estado de confusão e limitação a outro de entendimento e liberdade. Com o processo nos tornamos mais saudáveis e livres, mais humanos, e construímos novos órgãos de percepção.

“O homem conhece a si mesmo apenas na medida em que conhece o mundo. Ele se torna consciente apenas dentro do mundo, e consciente do mundo apenas dentro de si. Todo objeto, se bem contemplado, abre um novo órgão de percepção dentro de nós.” ― Goethe

 


Quarta, 27/07, 19h: Fenomenologia aplicada à saúde e ao desenvolvimento humano

A médica antroposófica Tânia Helena Alvares facilitará um dos encontros do ciclo de “Fenomenologia aplicada” no Círculo Regenerativo com ênfase na relação entre saúde e doença e os processos de percepção e imaginação à luz da fenomenologia de Goethe e Steiner.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

1 comment

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