O derramamento de petróleo que atingiu o litoral brasileiro e a cobertura da mídia deixa claro a incapacidade dos meios de comunicação de discutir o cerne da questão. É preciso reformular o problema.
É certo que a origem do derramamento, os impactos imediatos, o envolvimento dos voluntários na limpeza e os desdobramentos políticos são importantes e dignos de nota. Também é crucial, na era da pós-verdade, tomar algum tempo para desmentir notícias falsas. Mas não podemos aceitar o discurso superficial do “a culpa não é minha”.
Este não foi o primeiro crime ambiental catastrófico e não será o último. A tendência é que eventos como esse continuem a acontecer no Brasil e no mundo minando exponencialmente a resiliência dos ecossistemas que já estão fragilizados. Os oceanos, cruciais para o equilíbrio da Terra, já estão quase todos alterados.
Todo ecocídio, independente de sua magnitude ou localização geográfica, deveria fomentar discussões amplas e profundas sobre o modelo econômico-industrial vigente se quisermos evitar futuros distópicos. Essas discussões carregam o potencial de contribuir para a evolução da inteligência coletiva e mudar o que é tido como aceitável. Derramamento de petróleo e rompimento de barragens não são aceitáveis. Mas são assim consideradas nas análises de risco de tais empreendimentos. Existe um risco aceitável. Existe uma catástrofe aceitável na mentalidade da sociedade de crescimento industrial.
Em um momento de ressurgência da luta pela integridade do planeta, este derramamento de petróleo deveria colocar em pauta o decrescimento da infraestrutura de combustíveis fósseis em um cenário onde os investimentos ainda são crescentes. Deveria, ainda, colocar em evidência a característica suicida de um modelo de sociedade que consome avidamente o substrato de sua própria existência. O óleo, grudento e asqueroso, é o retrato de uma civilização global disfuncional que incentiva o sujo e o egoísta em detrimento do belo e do comum.
Enquanto o petróleo tiver mais valor em um navio cargueiro do que nas profundezas da Terra, de onde nunca deveria ter saído, teremos o aumento da temperatura global e dos “acidentes” associados. Enquanto tivermos um sistema que valoriza mais as pessoas doentes e um planeta violado teremos doenças mais perversas e um planeta mais hostil.
O cerne da questão é um modelo cruel de sociedade global utilitarista que nos engana, nos confunde e mina a nossa capacidade de geração de sentido e agência. O cerne da questão é que existe um mito de crescimento econômico infinito que compromete os interesses comuns.
Mas estamos despertando para uma nova história do mundo e da humanidade — uma em que seres humanos e natureza são um só. Uma história onde o desenvolvimento da civilização global segue rigorosamente as restrições impostas pelo fato de vivermos em uma casa comum: a espaçonave Terra. Uma história onde o petróleo e outros combustíveis fósseis possuem um só lugar: debaixo da terra honrando o processo evolucionário da vida neste planeta. Precisamos, então, que eventos desastrosos como esse nos façam reformular o problema e refletir diante perguntas mais profundas.