o ativismo radical - instituto de desenvolvimento regenerativo

O ativismo radical

A radicalidade do ativismo está em assumir a transformação de si mesmo e do seu modo de enxergar como a mudança que o mundo precisa

Este é o terceiro texto de uma sequência de cinco artigos que nos convoca a assumir o papel de ativistas radicais a serviço da construção de um mundo viável. A sequência é: Nós somos aqueles por quem esperávamos, O paradoxo do ativismo conservador, O ativismo radical, Como vemos o mundo? e Como as mudanças acontecem?. Acompanhe e assuma a sua identidade enquanto agente de transformação neste mundo em transição.

O ativismo reúne aquilo que há de mais essencial no ser humano: a consciência, a liberdade e a responsabilidade.Todos nós somos potenciais ativistas já que a prática ativista significa intervir na realidade em consequência do nosso poder de fazer escolhas conscientes sobre para onde queremos que o mundo caminhe.  

No entanto, a humanidade tem fortes tendências ao conservadorismo porque aprendemos a inventar justificativas para os nossos comportamentos. Queremos a mudança lá fora sem ter que enfrentar o desconforto de desconstruir e reconstruir quem somos. Julgamos as pessoas por suas ações, mas queremos ser julgadas por nossas intenções.

O ativismo radical, na contramão do conservadorismo, entende que qualquer comportamento que precise ser justificado é, por definição, condenável. A sua radicalidade está no fato de que a transformação de si mesmo e de seu modo de enxergar é a mudança que quer ver no mundo.

Honrar o processo de feedback

“[…] Agir, enquanto muitos não agem, e a questionar essa ação em nome dela própria enquanto se age.” — Allan Kaplan e Sue Davidoff

O ativismo radical está disposto a não apenas lutar pela mudança de paradigmas, mas a reavaliar profundamente o papel que temos desempenhado nos processos de mudança social.

Ele leva a sério o papel da humanidade no mundo ao assumir a consciência humana como propriedade emergente da evolução do planeta e do cosmos. Ele se incube de participar ativa e conscientemente do mundo porque sabe que a realização sublime da humanidade é a ação consciente de si intervindo no curso do processo evolucionário planetário e cósmico.

Para tanto, sabe que deve respeitar as leis que regem o funcionamento dos sistemas vivos. Sabe que o feedback, o mecanismo de retorno, é crucial para o desenvolvimento da vida. Por isso, adota uma conversa aberta com o mundo a todo o momento. Ele atua no mundo e, simultaneamente, o escuta.

Diferente do ativismo conservador que se parece com um monólogo porque intervém no mundo com um grau de convicção que o fecha para o retorno do mundo, o ativismo radical é uma conversa. Ele acredita que essa conversa é o que de melhor a humanidade pode e deve oferecer à Terra porque reconhece a relação reciprocamente criativa entre o ser humano e o mundo.

A radicalidade está na conversa

O ativismo direcionado para a mudança tem um aspecto muito diferente do trabalho planejado em direção à meta. Ele é um trabalho que acontece a partir de intenções profundas, mas com abertura para responder ao que emerge enquanto se pratica o que deseja construir.

O que é valioso nesse processo de abertura não é o aprendizado que dele surge, mas a prática da abertura em si. O aprendizado está em manter-se aberto mais do que naquilo que esta abertura é capaz de captar. É a atividade de observação e escuta que transforma mais do que o que é observado ou ouvido. É na ação de abertura, observação e escuta que as pessoas mudam.

Diferente de regras a serem respeitadas, o ativismo radical tem apenas diretrizes que guiam as atividades: receptividade ativa, qualidade de presença e atenção e abertura para ser mudado.

A receptividade é ativa porque no nosso estado comum não estamos receptivos. Estar receptivo envolve o esforço de quebrar a inércia da resistência ao outro – o estado que acostumamos a sustentar. A qualidade de presença e atenção e a abertura para ser mudado também são ações proativas. Para estar realmente atento é preciso renunciar ao hábito de “dar nome e função” para as coisas para que elas possam, então, se revelar como são e nos surpreenderem.

A abertura para ser mudado pela experiência compartilhada entre pessoas ou com paisagens envolve o enorme desafio de interiorizar a máxima: “deixar de ser o que somos para nos tornar algo novo não significa o nosso aniquilamento”. Ou seja, nos abrirmos para a possibilidade de sermos transformados não significa que não somos bons o suficiente.

Quando olhamos essas diretrizes podemos pensar que elas nos colocam em um lugar passivo ou pouco assertivo. No entanto, a sua prática nos exige o extremo oposto: a auto-afirmação saudável, a confiança de que somos bons sendo quem somos e que, por isso, podemos prontamente nos sujeitarmos à transformação.

É desse estado que surgem a pró-atividade, o engajamento e a assertividade necessários para seguir com os sentidos abertos ao que quer ser revelado através da experiência.

Praticando essas diretrizes nós nos abrimos para a experiência, permitimos que ela se revele a nós em seus sentidos ocultos e informações invisíveis. Nós convidamos a experiência para uma conversa sabendo que ambos sairemos dela transformados. Assim, criamos as condições necessárias para que possamos ter insights que antes seriam impossíveis de serem percebidos.

É a qualidade dessa conversa que se dá entre o ativista, as pessoas envolvidas e o contexto que garante o sucesso ou fracasso da intervenção. A real intervenção que abre o campo para mudanças é a arte de conversar com receptividade, atenção e abertura: consigo, com o outro, com o contexto.

E o que geralmente acontece na conversa? Cada pessoa envolvida é chamada a se abrir para enxergar a situação de um modo diferente e a aprender “sobre” e “com” o outro. Na medida em que isso é feito, a situação muda. Desde quando a situação foi vista de maneira diferente ela já mudou.

Nem sempre a conversa promove transformação. Mas, se a transformação tiver que acontecer ela acontecerá através da conversa. Está na conversa o potencial das mudanças das relações e da forma como a situação vê a si mesma. E isto é, por sua vez, o que realmente gera transformação.

Estarmos juntos de um modo diferente

O ativismo radical assume que para promover mudanças e gerar impacto positivo em ambientes e comunidades nem sempre há algo diferente a ser feito, mas sempre haverá um modo diferente de estarmos juntos. Desse modo, a radicalidade está em mudar a qualidade da presença nos contextos em que nos inserimos.

Mais do que mudanças estruturais ou materiais, acredita-se no incrível potencial das mudanças nas conversas e relações. Mais do que compartilhar ou ensinar uma visão de mundo, o foco está em examinar as maneiras como nós pensamos e aprender a pensar de novas maneiras. O modo de as pessoas serem e estarem umas com as outras é tomado tanto como o meio e quanto como o fim para cuidarmos das dores do mundo.

O ativismo radical adota como ponto de partida a premissa de que não estamos separados entre nós e nem da natureza, embora nossas ações pareçam ter essa separação como fundamento. Assim, se gasta menos energia acirrando a oposição a “inimigos” e se concentra mais em praticar aquilo que se busca com o ativismo.

É comum que no ativismo conservador lutemos por algo que não conhecemos. Por exemplo, reivindicamos igualdade de condições sem experimentá-la internamente. No nosso núcleo interno continuamos sustentando hierarquias e privilégios que nos impedem de usufruirmos de equidade social. Não temos a experiência sensorial disso e, então, a perseguimos como uma abstração.

Pelo fato de nunca termos experimentado a igualdade internamente a nossa busca fica esvaziada de sentido. Ela se torna uma busca compulsória. Perdemos a oportunidade de construirmos e celebrarmos entre nós aquilo que queremos que tenha projeção global.

Justificamos que não temos condição de criar equidade internamente porque não fomos ensinados a fazê-lo. Enquanto isso, esperamos que algo ou alguém promova as mudanças que só podem se tornar reais e escaláveis na medida em que são experimentadas e prototipadas por nós aqui e agora.

Consciente dessa cilada e tentando cuidar dessa lacuna de valores, o ativismo radical assume o respeito e o amor pelo processo como antídotos contra o utilitarismo, o instrumentalismo e a hipocrisia. Ele dedica tempo e energia para criar e oferecer oportunidades de real engajamento ao invés de se acostumar a coagir e convencer.

Ativismo sem adversários

Quando somos capazes de sustentar a receptividade ativa, a presença atenta e a abertura para sermos mudados, deixamos de ter adversários. Aqueles que resistem às mudanças acabam tendo um papel fundamental no processo de mudança social.

Para a pessoa que realmente está oferecendo atenção enquanto intervém em um contexto não existem adversários porque a própria atividade de se opor é incompatível com a qualidade de presença em que se está. Opor é fechamento. Oferecer tempo, espaço e escuta é abertura.

Quando estamos em busca de inteireza, de enxergar o que está acontecendo, todo elemento e todo aspecto é parte daquilo que se quer escutar. Nada pode ser ignorado. A autenticidade do ativismo radical está, dessa forma, no acolhimento da polaridade e na atenção dedicada a ela, na conversa que se pode ter com ela e na busca sincera por compreendê-la.

Ademais, enquanto ativistas radicais, cuidamos para não ver o mundo pela lente do “eu versus eles”. Treinamos para sempre nos ver como parte de um grande “nós” e, portanto, como parte de um sistema que quer se atualizar através daquilo que identificamos estar “errado” no outro. Tomamos o que há de “errado” no outro como parte daquilo que nós podemos contribuir para transformar intervindo de forma apropriada no contexto e, principalmente, transformando a nós mesmos e o nosso modo de enxergar o contexto, o outro e o “erro”.

Entender mais que explicar, perguntar mais que responder

Nós, enquanto civilização moderna, estamos tentando usar receitas, ideologias, sistemas de controle e tecnologias para eliminar as terríveis consequências das nossas receitas anteriores. Orientados pela ilusão do paraíso industrial e pela ideologia do progresso, tratamos as consequências fatais da tecnologia como se elas fossem um defeito técnico que pode ser remediado pela tecnologia. Seguimos procurando uma saída mecânica para o mecanicismo.

No entanto, as crises convergentes que vivemos sugerem que qualquer solução que não toque nas bases da visão de mundo que nos trouxe até aqui não será capaz de eliminar as consequências desastrosas das soluções anteriores. Algo diferente se faz necessário e isso não vai estar em uma solução tecnológica ultrassofisticada. É a nossa atitude, frente aos desafios que nos são apresentados, que precisa mudar.

Para avançarmos em direção a um mundo viável é necessário que renunciemos à nossa arrogância e nos esforçemos mais em entender do que em explicar. Isso é possível na medida em que cultivamos coragem e vulnerabilidade para abrir novos caminhos em que as perguntas tomam o lugar das respostas e nos dispomos ao desafio de mudar consciências e relações em vários e conflituosos níveis.

Sabendo disso, o foco do ativismo radical migra do método para a qualidade de conversa que se é capaz de ter e para o espaço que se é capaz de criar para isso. Obviamente, o método usado nos projetos e intervenções é importante. Mas, funciona como apoio não devendo levar o ativista a adotar uma receita, guia ou modelo na condução do processo.

O ativismo radical acredita na reflexão constante sobre a própria prática como caminho o caminho corajoso que se deve percorrer em direção à superação do mecanicismo e tecnicismo moderno.

O lado obscuro das convicções utópicas

O ativismo radical está ciente de que as convicções utópicas são o que move o mundo. Mas, também conhece o lado obscuro das convicções cuja impulsividade transforma um ativista radical em um conservador fundamentalista. Ele cuida para que o trabalho de ampliar o grau de conscientização, inclusive de si e de seu contexto, não o leve a cair na cilada de doutrinar aos outros.

Enquanto o ativismo conservador age sobre (de fora), o ativismo radical parte de (de dentro). Ele sabe que práticas simples são capazes de criar um envolvimento mágico ao redor delas quando se cultiva uma vida interna robusta. Como ativistas radicais, a centralidade da nossa prática está na intersecção entre, de um lado, quem somos e como vivemos nossas vidas e, de outro lado, o que fazemos no mundo.

É a integridade do ativista radical que confere um forte senso de realidade à sua utopia justamente por ele ter vivenciado experiências estando verdadeiramente dedicado a elas ao invés de passar distraidamente por elas.

O mundo cura a si mesmo

“O mais radical que qualquer um de nós pode fazer neste momento é estar completamente presente diante do que está passando no mundo.” — Joanna Macy

O ativismo radical reconhece que é o próprio mundo que está tentando mudar a si mesmo. Não somos nós que buscamos a cura para o mundo, é a cura do mundo que nos busca. O mundo existe muito antes de nós. Nossa jornada pessoal está ancorada neste mundo e, por isso, deve estar a serviço dele. Por isso, os ativistas radicais tomam as crises e os conflitos pessoais e coletivos como convites para irmos além do conhecido e ancorar no mundo um novo jeito, mais potente, de pensar, sentir e agir.

Ele entende que a vida, biológica e social, está a serviço da nossa transformação pessoal. E nós, reciprocamente, estamos a serviço da vida. Desse modo, quando escolhemos pela nossa transformação e pró-ativamente nos firmamos em seu caminho é porque algo aconteceu, o mundo nos proporcionou uma determinada experiência ou condição, para que fizéssemos essa escolha. Ativistas radicais assumem com respeito, retidão e responsabilidade a tarefa de serem veículos da cura do mundo.

Quando assumimos essa tarefa e somos orientados pelo ativismo radical, nasce um entusiasmo em encarar o seu maior desafio: sustentar a presença, oferecer atenção e praticar aquilo que quer ver emergir. Esse entusiasmo se alimenta dos feedbacks positivos recebidos a partir da prática de simples atos de humanidade e da revelação que emerge a partir da escuta profunda e da atenção focada.

Este texto foi inspirado pelas reflexões de Allan Kaplan e Sue Davidoff presentes no livro “O ativismo delicado”. O que está sendo chamado aqui de ativismo radical foi nomeado por eles, originalmente, como ativismo delicado. Muitas das características elencadas neste texto a respeito do ativismo radical são traduções pessoais de como eles abordam o ativismo delicado em seu livro.

Referências

Allan Kaplan e Sue Davidoff (2014). O Ativismo Delicado. The Proteus Initiative.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

Deixe um comentário