Separação entre natureza e cultura — a base do pensamento moderno - instituto de desenvolvimento regenerativo

Separação entre natureza e cultura — a base do pensamento moderno

Reconectar natureza e cultura/sociedade é um passo fundamental para criarmos culturas regenerativas

A separação entre natureza e cultura a partir do entendimento que a natureza deve ser dominada pela cultura é responsável pelo atual desequilíbrio da ecologia planetária promovido pelos seres humanos.

É comum usarmos os conceitos de natureza e cultura como distintos e até opostos. No entanto, muitos dos costumes que nos são comuns foram construídos historicamente a partir de interesses específicos. A separação entre natureza e cultura foi uma construção historicamente conduzida pelas sociedades modernas e é responsável pelas crises convergentes que vivemos hoje. Os povos indígenas nem mesmo têm palavras para descrever algo como natureza e cultura porque as entendem como mutuamente dependentes. E nós, porque as separamos? E quais as consequência disso?

O que desconhecemos tendemos a tomar como inexistente. E o que conhecemos tendemos a tomar como a versão mais bem acabada da realidade. Assim, tomamos como certo que a maneira como entendemos o mundo, isto é, nossa cosmologia ou cosmovisão, é aquela que melhor traduz a realidade do mundo. Esquecemos, no entanto, que essa visão de mundo foi construída historicamente. Ignoramos, ademais, que cosmovisões e paradigmas traduzem o que a mente humana e os sistemas de conhecimento da época eram capazes de traduzir sobre a complexidade do mundo. Mas, que com o tempo eles se tornam obsoletos ora porque o mundo já não é mais o mesmo, ora porque nos damos conta que aquela forma de compreendê-lo não consegue torná-lo compreensível mais.

A visão de mundo moderna nasce da divisão entre natureza e cultura

A nossa visão de mundo atual foi construída no advento da modernidade. Ou seja, no período marcado pelo renascimento científico com a dessacralização do mundo e emergência das ciências fragmentadas. Nesse contexto, o adjetivo moderno tem apontado para uma ruptura na passagem do tempo, isto é, para o início de um novo regime, uma aceleração no e do tempo, uma revolução. Assim, a noção de moderno acaba por representar um combate entre vencedores e vencidos estabelecendo um antagonismo entre sociedades modernas constituindo a “Idade das Luzes” versus sociedades não-modernas representativas de uma “Idade das Trevas”.

Com a dessacralização do mundo e a hegemonia conquistada pelas ciências de base cartesiana e newtoniana, a modernidade se estabelece a partir da divisão entre o que é considerado natureza e o que é cultura; o que é humano e o que é não-humano; o que tem agência, intencionalidade e subjetividade e o que é objetivo e inerte; entre o conhecimento (da natureza) e o poder (da cultura/sociedade). Então, tem-se, de um lado, a natureza e seus porta-vozes cientistas transformando-a em ciência; do outro lado, os políticos, porta-vozes da cultura transformada em política. No entanto, não foi sobre natureza no sentido científico que os modernos realmente se ocuparam. É a natureza no sentido da economia que teve um papel definitivo na modernização.

“Essa divisão entre natureza e cultura é, sobretudo, uma forma de se fazer política, de reunir as coisas em duas coletividades, por razões que vêm da própria modernidade” (LATOUR, 2009, p. 4).

A modernidade nasce, assim, de dois Grandes Divisores que se constituem como um ideal e uma ideologia definindo a forma como os modernos vêem a si mesmos e aos outros. O Grande Divisor Interno opera na separação entre natureza e cultura gerando divisões subsequentes entre objeto e sujeito, coisa e pessoa etc. Com a exportação do Grande Divisor Interno para a relação com o outro, estabelece-se o Grande Divisor Externo.

Através do Grande Divisor Externo, os modernos separaram, de um lado, o ocidental que representa a natureza como ela é; e no outro lado encaixaram as culturas tradicionais que representariam a natureza de forma subjetiva, e por isso, limitada e inadequada. Os ocidentais modernos seriam, assim, superiormente diferentes dos outros, pois dominaram a natureza através da ciência. Ambos divisores, interno e externo, têm o mesmo padrão colonial: a cultura dominando a natureza seja a natureza enquanto recurso seja a natureza enquanto homem selvagem.

A separação entre natureza e cultura é responsável pelas crises convergentes que vivemos

Todavia, vive-se hoje um curto-circuito que colapsa a ideologia de separação entre natureza e cultura uma vez que essa separação tem produzido inúmeras crises. As crises convergentes que vivemos enquanto civilização humana no planeta demonstra como nós modernos estamos produzindo eventos catastróficos, a exemplo da crise ecológica, que respaldam a impossibilidade dessa dicotomia entre natureza e cultura e como nossa visão de mundo já pouco tem a ver com a realidade do cotidiano. Além de viver uma crise de civilização, estamos vivendo uma crise de identidade porque não podemos mais ser representados por cultura em oposição à natureza como se fossem separáveis, independentes e distintas.

A visão de mundo moderna marcada pela separação entre natureza e cultura, objeto e sujeito, não humano e humano, tradicional e moderno etc. não serve mais para orientar o cotidiano da modernidade. Isso não quer dizer, ademais, que já tenha servido, adequadamente, em outro momento. De fato, o mundo nunca pôde ser entendido apropriadamente a partir desses dualismos. O que acontece hoje é que o monopólio de legitimidade reivindicado pelos modernos sobre essa ideologia dual e simplista é impraticável em tempos onde os mistos de natureza e cultura espalham-se por todos os cantos e se apresentam como graves problemas éticos da modernidade (LATOUR, 1994).

Superar a visão de mundo moderna é fundamental para superarmos as crises que vivemos

Estamos caminhando para um mundo não-moderno, no sentido de uma superação obrigatória e, em alguma medida, involuntária da modernidade. Com a falência do paradigma moderno, surge então a busca de uma nova cosmopolítica, isto é, de um novo entendimento e nova modalidade de governo em que seja impossível tratar de política e de cultura sem falar de natureza e vice-versa já que a própria natureza tem oferecido, desde sempre, uma lição de política. O que foi tomado como ontológico, isto é, como o próprio modo de ser do mundo (a separação natureza e cultura, humano e não-humano, tradicional e moderno, etc.) é ideológico e pode e deve ser reformulado a fim de que possamos ser orientados por uma visão de mundo que reconecte o que nunca esteve, na realidade, separado.

As questões envolvidas na ecologia política como os conflitos em torno da criação de unidades de conservação onde residem populações locais, as mudanças climáticas, a erosão de biodiversidade associada à extinção de línguas indígenas etc. são exemplos que permitem pensar as complexas associações entre o que antes fora entendido como natureza e cultura; mas que nesse contexto só podem ser entendido como um complexo interdependente de naturezas-culturas.

Todos esses exemplos nascem das próprias sociedades modernas para apresentar a impraticabilidade das bases conceituais da modernidade. Mas, se voltarmos nosso olhar para a maioria das sociedades não modernas constataremos a impossibilidade de separação de natureza e cultura, tradicional e moderno, humano e não-humano etc. O encontro com as sabedorias tradicionais nos mostram, além disso, como a nossa cosmovisão tem como marcas a categorização de si e do outro a partir de uma redução simplista da complexidade do mundo.

A maioria das comunidades humanas no planeta não separam natureza e cultura: as sociedades modernas são a exceção

O dualismo natureza e cultura é ineficaz para pensar, por exemplo, as cosmologias ameríndias uma vez que seus pensamentos não separam e hierarquizam o que os modernos entendem por natureza e cultura, humano e não-humano etc. O conceito de natureza, por exemplo, é inoperante para inúmeras sociedades não modernas que entendem a ação humana como interferência necessária para produção e conservação da biodiversidade. Povos como os ameríndios estariam habituados a compreender o que chamamos de natureza como um “espaço” interdependente da ação humana.

Nesse sentido, admitir a existência dos híbridos de natureza e cultura, a impossibilidade de sua separação e a inaplicabilidade e perigo da ideologia que os pretende separar são tarefas inevitáveis que se apresentam a nós. Isso pode e deve ser feito através da suspensão da exclusividade do pensamento ocidental e da ciência moderna para pensar os desdobramentos das culturas humanas, pois seria impossível pensar e compreender as práticas culturais não modernas a partir de dualismos, polarizações e limitações intransigentes que não lhes dizem respeito.

Assim, torna-se possível reconhecer os meios para refazer um mundo o qual possamos coabitar com outros seres ao invés de inabilitar a nossa coexistência como temos feito ao separar aqueles que fazem parte do mundo social dos que fazem parte do mundo natural. Para tanto, temos muito a que aprender com as visões de mundo indígenas e tradicionais.

Referências

LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

 


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Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

1 comment

[…] Na terceira fase a sustentabilidade é entendida como coevolução. Os seres humanos são vistos como potenciais contribuidores para a abundância da vida. Deste modo a presença humana na Terra passa a ter a capacidade de gerar mais abundância e condições propícias à vida do que seria possível sem ela. A mudança crucial é a superação da separação entre natureza e cultura. […]

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