Responsabilidade pessoal e engajamento social

Muitos de nós temos o desejo sincero de transformar a forma como as coisas, relações e instituições funcionam. Mas poucos de nós incorporamos na prática cotidiana a verdade de que a mudança dos sistemas sociais só é possível quando somos capazes de transformar nosso lugar e comunidade enquanto transformamos a nós mesmos.

A transformação pessoal e a mudança social são radicalmente interdependentes. O autoconhecimento, o autodesenvolvimento e a autotransformação são necessários na medida em que servem à transformação de algo maior do que nós. Se não, eles podem acabar se tornando um meio de enclausuramento pessoal associado à satisfação do auto-interesse desconectado dos outros, do mundo, da vida.

Do mesmo modo, a mudança social é legítima desde que contemple a transformação pessoal de pensamentos restritores, reações emocionais impensadas e comportamentos disfuncionais que comprometem a saúde das comunidades humanas e dos sistemas vivos.

O papel da crise

Nesse sentido, vale a pena destacar a crise como condição que abre caminhos tanto para a transformação pessoal quanto para a mudança social. A intensidade da crise é inversamente proporcional ao grau de responsabilidade que assumimos frente a ela. Quanto menor a resistência e maior o engajamento no seu enfrentamento, menos intensa a crise. E na transformação de si mesmo, mais do que na mudança de sistemas que em muito nos transcendem, é onde temos maior autonomia e podemos assumir maior responsabilidade. Essa condição, no entanto, não a torna mais fácil.  

Vivemos em uma sociedade que glorifica a conquista enquanto condena o trauma e a dor, e que celebra a previsibilidade e o controle enquanto rechaça a incerteza. Com esse pano de fundo, as crises pessoais e sociais encharcadas de trauma, dor e incerteza são comumente negadas por serem vistas como ameaças. Essa perspectiva, presente no inconsciente coletivo, nos mantém indispostos diante o trabalho duro de autotransformação e inseguros em relação ao nosso poder de decisão e intervenção na dinâmica social.

No entanto, quanto menos assumimos nossa responsabilidade enquanto potenciais agentes de transformação em um mundo que clama pela nossa participação, mais as crises psíquica, humanitária, climática e política se intensificam. Afinal, a crise é o chamado para a revelação de um potencial que deve emergir. Ela só desaparece quando um potencial, antes desconhecido, é revelado.

Os picos de biodiversidade, por exemplo, acontecem no planeta após sérias crises nas condições climáticas adequadas à sobrevivência da maioria das espécies. Nesse sentido, inspirados na inteligência da natureza, nós somos chamados a ver as crises como oportunidades para desenvolvermos resiliência criativa ao manifestar novas formas de pensar, sentir, agir, ser e se relacionar como medida de enfrentamento de circunstâncias caóticas e eventos disruptivos.

Não podemos deixar de querer e fazer diferente

Já é hora de pararmos de recriar trauma ao redor devido a nossa incapacidade de enfrentar, com amplitude perspectiva e abertura relacional, o sofrimento pessoal, a dor do mundo e as mudanças de comportamento individual e social que daí devem nascer. Já é hora de superarmos o hábito de terceirizar as decisões, soluções e responsabilidade pela nossa saúde pessoal e pela saúde planetária.

A situação atual do planeta e da humanidade é resultado da soma das pequenas decisões tomadas por cada um o tempo todo. Ernst Gotsch, em entrevista recente [Outubro/2020] no jornal baiano Correio, disse que precisamos acordar do sonho de que “não podemos querer e decidir fazer diferente”. Muitos de nós, em situação social e economicamente privilegiada, estamos na condição de poder querer e, portanto, fazer diferente. 

Embora sejam estruturais os erros que cometemos, podemos superar equívocos aceitando pagar o preço por fazer diferente, por radicalizar hábitos, por renunciar a dispensáveis conforto e prestígio… por confrontar a psicologia das massas, o modus operandi da economia global e as noções globalizantes de sucesso e realização. 

Parafraseando o ativista político Eldridge Cleaver, se não somos parte da solução, somos parte do problema. O planeta arde nas chamas provocadas pelo nosso silêncio apático na construção de um outro mundo possível. Nossos corpos, mentes e corações padecem de déficit de vivacidade e interações significativas. 

Ao nos relacionarmos com o outro, ao ocuparmos as paisagens, ao participarmos de uma comunidade ou território, ao interagirmos com a vida, ao nos posicionarmos politicamente… façamos a diferença. Sejamos a solução, começando já, da forma que nos couber.

“Todos nós temos o que precisamos para fazermos o que queremos acontecer.” — John Hardman

[Este texto é parte do material de apoio da jornada Em Busca da Visão – Propósito pessoal a serviço de Gaia]

Foto: The National Oceanic and Atmospheric Administration Photo Library

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

1 comment

Beatriz Melo

Perfeito!

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