Por que não mudamos?

“A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação. Até hoje os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas somente pela renovação da atitude do indivíduo.” —  Carl Gustav Jung

Nós temos uma pequena janela de tempo para fazer mudanças significativas antes de entrarmos em um curso irreversível de mudança climática que abalará o planeta e a humanidade de maneiras imprevisíveis. O relatório de 2018 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas alertou que tínhamos cerca de 12 anos para fazermos mudanças massivas que poderiam impedir os impactos altamente destrutivos e irreversíveis da mudança climática. 

E por que ainda não as temos feito? Há uma razão pela qual tem sido muito difícil encontrar soluções para os desafios globais e estarmos vivendo tamanhos retrocessos em relação à questão ecológica, econômica, social e política. A dificuldade que temos em superar os desafios que se apresentam se deve à resistência que temos em enfrentar as causas mais profundas que se escondem atrás de tamanha ignorância e destrutividade. A situação global é uma projeção da devastação de nossas paisagens internas espelhando o que devemos urgentemente olhar dentro de nós.

Escondido nas atrocidades humanas há profundo sofrimento. Vítimas e opressores, de modos diferentes, sofrem. Sem o reconhecimento da nossa dor pessoal e coletiva e a superação da associação entre sucesso e invulnerabilidade não seremos capazes de fazer transformações internas e sistêmicas significativas. Elas são interdependentes. E começam a ter lastro na realidade quando superam a barreira da superficialidade. Nós precisamos fazer as pazes com a vulnerabilidade e assumir que estamos machucados. 

O efeito do patriarcado

“A tentativa de escapar da dor é o que cria mais dor.” — Gabor Maté

Para Bethany Webster, pesquisadora sobre trauma intergeracional, um grande obstáculo que impede a efetivação das mudanças necessárias é o forte preconceito contra as vítimas na cultura ocidental. Ninguém quer se sentir uma vítima e aparecer como vítima para os outros. Mas, de acordo com Bethany, não querer ser uma vítima nos mantém presos à vitimização.

Inevitavelmente, todos nós fomos vítimas de alguma experiência de dor na vida. A dor nos coloca, momentaneamente, na posição de vítima porque nos fragiliza. Devido a nossa incapacidade de suportar a dor e, simultaneamente, nos manter abertos às experiências, construímos mecanismos de proteção, condenamos a vulnerabilidade e engavetamos as emoções. Passamos a nos defender de circunstâncias que nos fragilizam porque queremos evitar a memória de impotência dos choques de dor comumente vividos na infância. Mas com a evitação passamos a replicar, coletivamente e a todo momento, a nossa ferida pessoal.

A tentativa compulsória de evitar o lugar de vítima, a dor e as emoções se deve à vigência do patriarcado como modus operandi da sociedade ocidental. Ele valoriza a competição, a dominação e a filosofia do “vencer a todo custo”. Desde que nascemos essa visão de mundo está presente no circuito neural do nosso cérebro restringindo as respostas da humanidade à reatividade diante os desafios.

Quando não reconhecidas, nossas feridas nos mantêm presos no modo de autopreservação — o estado de luta ou fuga emocional. O sistema nervoso conduz o corpo e a mente para a resposta de defesa diante qualquer indício de dor. Assim, passamos os dias enclausurados em uma redoma egóica que está super-ocupada tentando nos defender contra a vida. A energia gasta com a resposta de defesa não deixa espaço para o desenvolvimento de nossos potenciais inerentes. Em síntese, as feridas ignoradas amortecem os impulsos internos que nos guiam em direção à expressão de nosso eu autêntico e da visão que viemos compartilhar com o mundo.

Dessa forma, na medida em que tentamos controlar e dominar tudo e todos através da racionalidade fria e da ação reativa, vamos nos tornando uma espécie traumatizada especialista em criar trauma ao redor. O distanciamento do sentir, a ignorância da dor e a normalização do trauma tolhem a criatividade, turvam a visão e minam o poder de transformação. 

De fato, a maioria dos lares da infância eram zonas de conflito emocionais. A razão pela qual continuamos evitando essa constatação é porque ela requer resiliência emocional, abertura à dor, empatia e cuidado. E essas são competências condenadas pelo patriarcado. 

Enquanto isso, nossos problemas cotidianos continuam escancarando sintomas de feridas profundas que são potenciais portas de entrada para percepção e transformação. Admitir isso não é ser uma vítima impotente. Para Bethany, é o ápice da responsabilidade pessoal, marca de maturidade emocional e o único caminho possível para promover a evolução humana. 

A mudança de postura do controle para o cuidado é a ponte que devemos atravessar em direção à superação do patriarcado. Ela representa a reinserção do sentir como parte da condição humana e a possibilidade de atingir o núcleo das crises convergentes que ameaçam o planeta e a humanidade. Tocar a dor, estar com ela e mover-se através dela como uma testemunha empática é o ponto de mutação que possibilitará elevar a humanidade da condição de inimigos de si mesmo, do outro e da natureza para participantes sãos na teia da vida. Quando o suficiente de nós fizer isso, a humanidade será transformada.

Em busca da massa crítica

“O que você faz, faz a diferença. Você precisa decidir que tipo de diferença deseja fazer. ” — Jane Goodall

Rupert Sheldrake, bioquímico e doutor em biologia, postulou na década de 1980 uma hipótese sobre como os seres vivos aprendem e adquirem novos comportamentos. Ele descobriu que quando um comportamento é repetido número suficiente de vezes forma-se um campo mórfico com uma memória cumulativa baseada no que aconteceu no passado. Os campos mórficos são estruturas que se estendem no espaço-tempo e moldam formas físicas e comportamentos. 

Tudo, seres vivos e não-vivos, está associado a um campo mórfico específico que faz com que um sistema funcione como tal, isto é, como um conjunto integrado em vez de um amontoado de partes. Diferente dos campos gravitacionais e eletromagnéticos que transmitem energia, os campos mórficos transmitem informação de modo que o conhecimento adquirido e agregado por um indivíduo se torna um patrimônio coletivo que é compartilhado por todos os indivíduos daquele sistema. 

A ressonância mórfica, nome de sua teoria, demonstra que a mudança no comportamento de uma espécie ocorre quando uma massa crítica é alcançada. A massa crítica é o número necessário de indivíduos que precisam aderir a um determinado hábito para que o comportamento de toda a espécie seja alterado. Assim, Sheldrake explica como novos padrões de comportamento podem surgir e, com isso, como a natureza das espécies, inclusive a humana, pode se modificar. 

Esse processo começa com o inimaginável sendo feito por alguns e repetido por outros até que um número crítico de pessoas faz a mudança e este novo comportamento torna-se o padrão de como agimos e, consequentemente, do que somos. É assim que a mudança de comportamento humano acontece: repetimos vezes suficientes um comportamento motivado por um princípio até que, de repente, nos tornamos o que fazemos.

Por isso, precisamos de mais e mais pessoas que se tornem “especialistas” em seu próprio trauma, isto é, que acolham e cuidem de suas dores para que elas não ganhem proporção coletiva e resultem nos desastres sociais e ecológicos que assistimos diariamente. Qualquer forma legítima de ativismo deve andar de mãos dadas com a compreensão de que nossas dores pessoais desempenham um papel crucial na forma como participamos da vida porque retroalimentam as dores do mundo. Sem esse reconhecimento, as nossas iniciativas, embora bem intencionadas, continuarão a ser fragmentadas, superficiais, insustentáveis e antiéticas.

Dentro das feridas há o potencial que precisamos recuperar para responder criativamente aos desafios presentes. Com a acolhida das dores que encobrem potenciais adormecidos, a nossa inteligência e o nosso poder deixam de estar a serviço da auto-preservação e são direcionados para cuidar das dores da Terra. Cuidar das nossas misérias pessoais é a condição para participar apropriadamente do mundo. Assim, podemos oferecer ações virtuosas como expressão da nossa contribuição autêntica e do nosso serviço comprometido ao mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível.

[Este texto é parte do material de apoio da jornada Em busca da visão – propósito pessoal a serviço de Gaia]

Referências

Bethany Webster. Moving to a New Level of Empowerment in Your Life, 2007.

Charles Eisenstein. O mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível. Palas Athena, 2016.

Rupert Sheldrake. A Presença do Passado: Ressonância Mórfica. Instituto Piaget, 1996.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

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