as tres dimensoes da grande virada - instituto de desenvolvimento regenerativo

As três dimensões da Grande Virada

Tomando emprestada a perspectiva das gerações futuras podemos dizer que estamos vivendo hoje a Grande Virada de uma sociedade de crescimento industrial para uma sociedade que sustenta a vida. O grande desafio desse momento histórico é sermos capazes de escolher a vida.

A sociedade de crescimento industrial

No último século, a humanidade desenvolveu o contexto científico e tecnológico em uma velocidade vertiginosa como nunca antes se assistiu na Terra. Todavia, esse poder criador tem estado mais alinhado com ações destrutivas do que com um senso de responsabilidade correspondente.

Apesar da tecnologia e da globalização aparentemente conectar as pessoas à medida que se propõem a diminuir distâncias, nossas preocupações pessoais se tornam cada vez mais limitadas ao nosso próprio eu e aos meios de reprodução da nossa própria vida.

Vivemos um movimento de enfraquecimento de comunidades que, como consequência, nos desconectou uns dos outros. Os nossos círculos de afeto se reduziram à nossa própria família e alguns amigos íntimos. Não compartilharmos do senso de espécie comum enquanto humanidade e, tampouco, de lar comum com os sistemas vivos e formas de vida não-humanas.

Apesar de saber que os recursos necessários a nossa sobrevivência são finitos, nos comportamos como se não fossem devido ao paradigma antropocêntrico e egocentrado em que operamos enquanto sociedade de crescimento industrial.

No entanto, a finitude dos meios e recursos indispensáveis a nossa existência, ironicamente, é algo que nos chama à conexão e ao reconhecimento da nossa interdependência uma vez que, nas palavras de Dalai Lama, “nenhuma nação ou comunidade por si só pode esperar ser capaz de resolver estes problemas por si mesmos”.

Para superá-los teremos que acordar um sentido universal de responsabilidade de modo que a humanidade inteira se interesse uns pelos outros e pelos sistemas de suporte à vida na Terra.

A sociedade que sustenta a vida

O momento atual nos convida a escolher pela vida e assegurar um mundo em que possamos satisfazer as nossas necessidades sem destruir o sistema de suporte vital. Para além disso, podemos escolher trabalhar para a regeneração dos sistemas vivos criando mais vida, abundância e comunidade à medida que trabalhamos, simultaneamente, para a nossa autorrealização.

Essa é uma escolha que nos cabe uma vez que temos os conhecimentos necessários para realizá-la. Já conhecemos e praticamos tecnologias sociais e científicas para cultivar alimentos criando mais solo ao invés de erodi-los, para assegurar ar e água limpos e gerar energia a partir de fontes renováveis, para mediar conflitos comunitários e internacionais e implementar regimes de tomada de decisão democráticos etc.

Joanna Macy e Molly Young Brown, tomando emprestadas as perspectivas das futuras gerações, entende que a Grande Virada de uma sociedade de crescimento industrial para uma sociedade que sustenta a vida está acontecendo a partir das ações de diversos grupos humanos engajados em:

  1. diminuir os danos causados à Terra;
  2. analisar as causas estruturais e criar instituições alternativas ao modus operandi;
  3. transformar fundamentalmente as cosmovisões e os valores vigentes.

Essas são as três dimensões da Grande Virada da sociedade de crescimento industrial para a sociedade que sustenta, promove e celebra a vida. Todos nós temos aptidões e talentos únicos e indispensáveis que servem a uma ou mais delas.

Ações para diminuir os danos causados à Terra

As ações para diminuir os danos causados à Terra são ações de contenção em defesa da vida na Terra. Geralmente, elas são as ações mais evidentes da Grande Virada. Elas exigem um esforço heroico de estar sempre na linha de frente de grandes enfrentamentos. Incluem o trabalho político de conter ações de impacto socioambiental destrutivo e processos diretos de boicotes, protestos e desobediência civil.

Algumas possibilidades são:

  • “documentar os efeitos da sociedade de crescimento industrial na ecologia e na saúde;
  • campanhas em favor de leis que mitigam os efeitos da poluição, pobreza e falta de acesso a moradia;
  • promover a regulamentação e implementação de padrões ambientais e sociais justos;
  • fazer lobby contra acordos comerciais internacionais que ponham em perigo os ecossistemas e comprometam a justiça social e econômica;
  • relatar as práticas ilegais e imorais das corporações;
  • boicotar empresas que ponham em perigo sistemas vivos ou explorem trabalhadores;
  • bloquear e observar locais de destruição ecológica;
  • protestar contra o comércio global de armas;
  • incentivar a luta dos sem-teto e sem-terra etc.” (Macy e Brown, p. 14).

Ações para analisar as causas estruturais e criação de instituições alternativas

A segunda dimensão da Grande Virada é a analise das causas estruturais e criação de instituições alternativas que visam a liberação do planeta e de nós mesmos dos danos infligidos pela sociedade de crescimento estrutural à medida que se aprofunda na compreensão de suas dinâmicas.

Isso nos permite adquirir uma visão sistêmica e nos liberta do hábito de demonizar, com tom exclusivista, políticos e diretores executivos. À medida que compreendemos o funcionamento da sociedade de consumo globalizada suas leis e o paradigma em que opera percebemos a sua fragilidade, dependência de nossa participação e condenação à transformação.

Criar instituições alternativas pressupõe renunciar à espera de resposta dos políticos estatais e demais tomadores de decisões em adotar as medidas que reivindicamos. Nós mesmos agimos escolhendo participar ativamente de nossas comunidades e fazendo florescer de nossas mentes, corações e mãos ações que podem parecer isoladamente marginais, mas que contém sementes de um futuro possível.

Algumas possibilidades são:

  • “seminários e grupos de estudo que expõem a natureza da sociedade de crescimento industrial e o funcionamento da economia global;
  • serviços educacionais sobre os custos ecológicos e humanos da sociedade de consumo;
  • criação de medidas novas e precisas de riqueza e prosperidade que substituam os indicadores monetários de crescimento e desenvolvimento;
  • serviços comunitários para a resolução e mediação de conflitos que substituam o contencioso judicial;
  • diminuição da dependência de combustíveis fósseis e nucleares e conversão para uso de energia renovável e rentável;
  • divulgação de terras não individualizadas como fundos comuns e de conservação priorizando as necessidades da própria terra;
  • habitação comunitária e ecovilas que promovem cuidados interpessoais, intergeracional e terrestre;
  • iniciativas locais como hortas comunitárias, economias de escambo e grupos de troca de saberes e habilidades;
  • programas comunitários e municipais de compostagem e reciclagem;
  • métodos holísticos de saúde e bem-estar que complementam os modelos de diagnóstico e tratamento convencional e que levam em conta as habilidades de auto-cura da mente e do corpo;
  • moedas locais baseadas na troca de bens e serviços que reciclam recursos dos cidadãos da comunidade (em vez de serem esvaziados pelas corporações multinacionais);
  • projetos educacionais inovadores que substituem o modelo linear, mecânico e repetitivo e que apresentam aos jovens o mundo natural e os mestres de suas comunidades;
  • sistemas de comunicação eletrônica que permitem ativistas de todo o mundo compartilhar informações, desenvolver estratégias e coordenar ações fora das burocracias da mídia de massa etc.” (Macy e Brown, p. 16).

Ações para transformação da percepção

A terceira dimensão da Grande Virada fala sobre a transformação cognitiva e espiritual a respeito de como percebemos a realidade. As experiências e o entendimento profundo funcionam como o solo fértil em que as sementes de novas instituições sociais podem germinar, ser sustentadas e prosperar.

Crises de percepção que nos abrem para uma revolução cognitiva ou despertar espiritual surgem, em muitos casos, em consequência de nossa dor pelo mundo e do reconhecimento do erro que se trata os paradigmas que tratam o ser humano como um ego independente e competitivo.

Em outros casos, podem surgir da resposta esperançosa diante o desenvolvimento de ciências holísticas como o pensamento sistêmico, teoria dos sistemas vivos, teoria do caos e complexidade, ecologia profunda etc. Ou ainda, pela identificação com tradições de sabedoria indígenas e vozes místicas presentes em religiões ancestrais.

A nossa dor pelo mundo, o desenvolvimento científico e os ensinamentos dos povos nativos são como rios que fluem juntos em prol do reconhecimento de que estamos vivos em uma Terra vivente que é fonte do que somos e do que podemos alcançar.

Essa dimensão da Grande Virada nos apresenta objetivos mais nobres e prazeres mais profundos, redefine a nossa noção de riqueza e valor, nos libera de ilusões relacionadas a quem somos, do que precisamos e do lugar que ocupamos na ordem das coisas. Ela nos leva de volta para a casa para o reconhecimento do nosso pertencimento mútuo.

Algumas possibilidades são:

  • “a teoria geral dos sistemas vivos que revela a qualidade auto-organizativa da realidade e a presença da consciência na natureza;
  • a teoria de Gaia revela que nosso planeta é um sistema vivo e nosso corpo terrestre;
  • a ecologia profunda que nos resgata do antropocentrismo e nos convida a voltar para casa em comunidade com todos os seres;
  • a espiritualidade da criação e a teologia da libertação que rompem com dicotomias erguidas pelo pensamento religioso hierárquico e invocam a sacralidade de toda a vida;
  • o budismo engajado e as correntes similares de demais tradições religiosas que apresentam ensinamentos de respeito pela Terra e da inter-existência de todas as formas de vida como fundamento da ação social e da prática espiritual;
  • o ressurgimento das tradições xamânicas e seus meios para o reconhecimento de nossa identidade em relação com a Terra e as outras espécies;
  • a ecopsicologia que eleva as metas e os meios da psicoterapia às preocupações patologias sociais mais amplas e nos ajuda a questionar nossa indiferença à destruição do mundo;
  • o movimento de simplicidade voluntária que liberta-nos dos padrões de consumo que não refletem nossas necessidades reais e nos permite encontrar maneiras frugais e satisfatórias de conexão com o mundo;
  • a música e a arte que expressam a nossa interconexão e incorporam sons e imagens da natureza” etc. (Macy e Brown, p. 19).

O trabalho da primeira dimensão serve ao propósito de economizar tempo e salvar vidas, tradições, paisagens. Ele protege a sociobiodiversidade. Todavia, não é suficiente para fazer surgir uma sociedade que sustenta a vida. No mesmo sentido, a criação de instituições alternativas só podem se enraizar se houver a incorporação dos valores que as sustentam. Elas devem refletir a maneira como percebemos e nos relacionamos com os sistemas vivos e comunidades humanas.

Por isso, a terceira dimensão a transformação do nosso sentido de identidade a partir de uma crise de percepção é o fator decisivo para superarmos os traumas sociopolíticos e ecológicos que enfrentamos, irmos além da nossa indiferença e apatia e nos engajarmos na construção de soluções eficazes que integrem uma revolução ecológica e social.

“Nesse momento histórico, nós somos convocados a promover uma Grande Virada, marcada por uma revolução ecológica e social, que repense e reestruture não apenas a economia política, mas, principalmente, os hábitos e valores que a sustentam.” — Joanna Macy e Molly Young Brown

O fim da era de previsões

Apesar de podermos tocar as três dimensões da Grande Virada, não temos como nos certificar que ela ocorrerá, ou seja, de que faremos a transição de uma sociedade de crescimento industrial para uma sociedade que sustenta a vida. Não temos como saber se sucumbiremos ao ponto de não-retorno das mudanças climáticas e da erosão genética ou se guiaremos a humanidade para um novo jeito de ser e estar na Terra.

Todavia, sabemos que se ela não ocorrer não será por falta de tecnologia ou conhecimento relevante, mas por falta de vontade política e engajamento pessoal e social. Todos os desafios que enfrentamos hoje com vistas à regeneração de paisagens e comunidades, da reversão das mudanças climáticas à contenção de guerras nucleares, não são tão graves quando a nossa falta de resposta pessoal e coletiva a eles.

“Quando estamos distraídos e com medo e as probabilidades correm contra nós, é fácil para o nosso coração e mente seguirem entorpecidos.” — Joanna Macy e Molly Young Brown

Portanto, o que de mais urgente somos convocados a fazer é despertar do nosso sono e regressar à vida para que possamos, finalmente, tomar a nossa parcela de responsabilidade na Grande Virada.

Referência

Joanna Macy e Molly Young Brown (2019). Nuestra Vida como Gaia: Prácticas para reconectar nuestros seres, nuestro mundo. Tradução de Adrián Villaseñor Galarza.


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Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

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