Recuperar e promover a memória biocultural da humanidade bem como acordar a nossa capacidade de adaptação resiliente e aprendizado contínuo são tarefas urgentes do nosso tempo.
Hoje experimentamos uma noção do tempo extremamente reduzida limitando-se apenas a nossa própria geração. A consequência direta disso é o nosso esquecimento daqueles saberes e sabedorias cultivados pelos nossos ancestrais através dos quais se tornou possível a nossa sobrevivência na Terra. Nesse artigo abordo como as crises convergentes que vivenciamos são sintomas da nossa amnésia biocultural e de um paradigma sociocêntrico e etnocêntrico.
À medida que somos assolados por inúmeras crises estamos sendo convidados a superar a nossa pretensão de hegemonia sociocultural a fim de que possamos nos desviar da perigosa vulnerabilidade cultural e ecológica que arrasa as sociedades modernas. Diante do fato das bases socioecológicas de que milhares de comunidades humanas se valeram para sustentar a sua sobrevivência no planeta estão sendo dilaceradas pelo contexto moderno de colonização que se estende pelos séculos, é urgente acordar a memória coletiva e superdiversa da humanidade para a superação da crise de civilização que ameaça o futuro da espécie humana e que já tem minado a possibilidade de existência de tantas outras espécies no planeta.
O principal problema da nossa civilização enquanto sociedade de crescimento industrial é a tendência a viver sob a tirania de um presente estendido mantido pelas expectativas de um futuro que nunca chega e não permite vislumbrar outros futuros. Desse modo, a sociedade moderna padece de amnésia biocultural à medida que perde sua capacidade de recordar e de conciliar inovação com tradição na busca de soluções para os problemas que tem criado.
Do que se trata a memória biocultural da espécie humana?
A memória da espécie pode ser dividida em, pelo menos, três tipos: genética, linguística e cognitiva, sendo expressa na variedade ou diversidade de genes, línguas e conhecimentos, ou sabedorias” (Toledo e Barrera-Bassols, 2015, p. 23). Enquanto as dimensões genética e linguística certificam uma história comum entre a história da humanidade e a história da natureza, a dimensão cognitiva compreende, avalia e valora essa experiência histórica.
Identificam-se hoje, no planeta, dois tipos principais de diversidade: cultural e biológica. Enquanto a diversidade cultural congrega a diversidade linguística, genética e cognitiva, a diversidade biológica diz respeito à diversidade de paisagens, habitats, espécies e genomas. A memória da espécie congrega e consagra a comunhão entre essas diversas faces da diversidade e, por isso, “permite que os indivíduos lembrem-se de eventos do passado, ajuda a compreender o presente, fornece elementos para o planejamento do futuro e serve para reconstituir eventos similares ocorridos anteriormente e até mesmo inesperados, improváveis ou surpreendentes” (Toledo e Barrera-Bassols, 2015, p. 18).
A partir da comprovação de que a biodiversidade acende nas áreas de maior diversidade linguística associadas aos territórios indígenas e tradicionais e de que a ameaça de perda da biodiversidade é ampliada sob o efeito do desaparecimento progressivo das línguas, têm-se a confirmação do “axioma biocultural”: a diversidade biológica e cultural são construções mutuamente dependentes enraizadas em contextos geográficos e históricos específicos. Metaforicamente, no teatro da memória, têm-se os territórios tradicionais como cenário e os povos indígenas, populações tradicionais, camponeses e grupos sociais locais como os atores. A eles “coube a tarefa de interagir com os mais ricos acervos de diversidade biológica do planeta. São eles que manejam e conservam a diversidade agrícola e que, juntos, falam mais de 6 mil idiomas, representando a maior parte da diversidade cultural da espécie (Toledo e Barrera-Bassols, 2015, p. 57).
Sinais da amnésia biocultural moderna
O nosso primeiro sinal de esquecimento está no fato de não admitirmos que somos membros de apenas mais uma espécie no planeta e representamos apenas uma maneira de se organizar em coletivos sociais e estabelecer relações com a natureza. Assim, ignoramos que há diversas outras maneiras, a partir de diversas outras éticas, das comunidades humanas se organizarem socialmente e estabelecerem relações com o que não é humano. Em consequência, esquecemos que as sociedades humanas conseguiram persistir ao longo do tempo neste planeta porque desenvolveram conhecimentos e estratégias eficientes em sua relação com a natureza permitindo não apenas conviver com ela, mas, através de sua intervenção e manejo, aperfeiçoá-la.
Sociocentrismo e etnocentrismo: as causas por detrás de um planeta doente
Hoje, no entanto, a sociedade moderna se abstém da memória da espécie e se restringe a reproduzir uma única forma de observar, conhecer e conviver com o mundo. Isso porque o modelo social hegemônico repousa sobre uma premissa tanto sociocêntrica quanto etnocêntrica. Sociocêntrica porque subjuga os não-humanos (o chamado mundo natural) lhes retirando sua subjetividade e se colocando em uma situação de superioridade ao invés de cooperação mutualística. Etnocêntrica porque ignora a sagacidade e riqueza da diversidade de saberes e formas de se relacionar com a natureza transmitida e aperfeiçoada no decorrer da história humana na Terra sem a qual a sobrevivência dos grupos humanos não teria sido possível.
Se o homo sapiens conseguiu permanecer, colonizando e expandindo a sua presença na Terra, é porque foi capaz de reconhecer e aproveitar os elementos e processos do mundo natural, um universo que encerra uma característica essencial: a diversidade. […] Esse traço evolutivamente vantajoso da espécie humana tem sido limitado, ignorado, esquecido ou tacitamente negado com o advento da modernidade, que constituiu uma era cada vez mais orientada pela vida instantânea e pela perda da capacidade de recordar (Toledo e Barrera-Bassols, 2015, p. 28).
Com uma noção de tempo restrita a sua própria geração, a sociedade moderna se iludiu sobre as possibilidades de permanência da espécie humana neste planeta. Esta ilusão, fruto do hipnotismo impulsionado pela ideologia do progresso e da modernização intolerante, faz da nossa civilização um universo autocontido, autojustificado e autodependente que, à medida que nega a diversidade e a sua capacidade de reconhecer o passado, volta-se contra a sua própria existência. Assim, identificada apenas com os impactos positivos da velocidade vertiginosa das mudanças que produz no contexto de uma racionalidade econômica baseada na acumulação e concentração de riquezas, a era moderna se tornou prisioneira do presente. Ou seja, nos encontramos dominados pela amnésia que nos impossibilita de lembrar tanto de processos históricos imediatos quando daqueles que nos trouxeram até aqui ao longo de centenas, milhares, milhões e bilhões de anos (Toledo e Barrera-Bassols, 2015).
Ao destruir a diversidade biológica e cultural e, consequentemente, a experiência humana acumulada em forma de sabedorias locais, temos solapado o equilíbrio da ecologia planetária culminando em uma violência cada vez maior entre comunidades humanas e na destruição dos sistemas vivos que sustentam a vida no planeta. Padecendo à ilusão de um crescimento infinito em um planeta finito, pagamos o custo hoje dos efeitos de uma dupla exploração: “social” e “natural”. A pegada ecológica[1] da humanidade no planeta, completamente fora do controle atingindo níveis e ritmos inimagináveis, já apresenta seus efeitos: crises econômicas convergentes, contaminação industrial, erosão genética, acirramento de conflitos étnico-religiosos em disputa por recursos naturais, intensificação da violência nacional e internacional etc.
A insuficiência dos modelos produtivos modernos para lidar com a complexidade do mundo
Assistimos à insuficiência dos modelos produtivos capitalistas e socialistas em apresentar soluções para as injustiças sociais e ecológicas porque ambos permanecem naturalizando uma narrativa de guerra em que há sempre vencedores e vencidos, um modo de pensar dualista e simplista, a ilusão do controle sobre a matéria e da exploração desmedida dos recursos naturais. Enfim, viu-se a complexidade do mundo solapando as bases e as expectativas confiadas à falsa sensação de controle dos ocidentais. As tendências de progresso e modernização, fundamentadas em princípios de competição, individualismo, uniformidade, hegemonia e especialização funcional, como referências do paradigma da racionalidade econômica, instauram e acirram uma severa crise de diversidade (Toledo e Barrera-Bassols, 2015). Dessa forma, dominar, vencer, controlar já não é possível mais se queremos encarar com lucidez a complexidade do mundo que se apresenta.
É a memória da espécie humana sustentada pelas sociedades não-modernas que permite-nos adaptarmos continuamente à complexidade do mundo. Assim, com a ameaça à memória biocultural da humanidade estamos completamente vulneráveis à crise ecológica[2]. Portanto, se a diversidade é tomada como um problema no contexto da globalização hegemônica da modernidade, estamos, de fato, diante de uma demanda para a qual as soluções sustentadas pelo paradigma moderno não oferecem muitas margens de superação.
No entanto, a crise da modernidade, a partir de sua cegueira e incapacidade de recordar, nos leva diretamente ao encontro daqueles que permanecem capazes de recordar a memória da espécie humana porque têm uma perspectiva de tempo muito menos reducionista e egocentrada. Na memória biocultural da espécie que permanece ativa entre povos indígenas, populações tradicionais e campesinos se encontram importantes chaves para decifrar, compreender e superar a crise global à medida que revelam os limites e preconceitos da visão de mundo moderna e apontam soluções para os problemas atuais ao reconhecer outras formas de convívio entre nós e a natureza.
A nossa capacidade de adaptação resiliente e aprendizado contínuo são as chaves para nossa sobrevivência na Terra
Na perspectiva do tempo geológico, mensurado em milhões de anos, toda e qualquer espécie sobrevive em função de sua capacidade de adaptação resiliente ao meio e à sua capacidade de continuar a aprender com experiência adquirida ao longo tempo. No entanto, a modernidade inaugura um dilema capital na escala da espécie: uma porção da humanidade lembra enquanto a outra esquece, um setor da humanidade inova para enriquecer a diversidade biocultural do mundo enquanto o outro setor da humanidade, embora também crie novas formas de estar no mundo, se engaja na destruição da diversidade biocultural que representa a memória da espécie (Toledo e Barrera-Bassols, 2015).
Vê-se, assim, que a sociedade moderna, enquanto modelo social hegemônico, padece de uma amnésia biocultural à medida que promove mecanismos para a erosão das diversidades biológica, linguística, genética, agrícola e paisagística as substituindo por desenhos industriais, paisagens monótonas e superespecializadas, variedades genéticas prototípicas, línguas dominantes e oficiais e um paradigma e ciência arrogantes que condicionam, uniformizam e estereotipam padrões de pensamento, sentimento e comportamento. A amnésia biocultural se dá, ademais, em consequência de um verdadeiro memoricídio cultural que tornou irrelevante a produção local de conhecimentos e de soluções e a sua transmissão e refinamento ao longo de gerações em uma escala temporal que se estende para além da temporalidade presente no paradigma moderno (Toledo e Barrera-Bassols, 2015).
Se o pecado capital da modernidade tem sido o de construir um mundo (moderno) sobre as supostas cinzas de tantos outros mundos existentes, uma modernidade alternativa, isto é, a superação da modernidade que conhecemos e reproduzidos, passa pela recuperação de nossa memória histórica “uma vez que só inovando a partir, e não em vez da experiência acumulada através do tempo, ou seja, da tradição, é que poderemos criar um mundo duradouro” (Toledo e Barrera-Bassols, 2015, p. 253). Essa perspectiva nos permite, simultaneamente, reconectar a história da natureza com a história da humanidade e reconhecer o papel determinante desempenhado pelos povos indígenas e tradicionais.
Assim, esses grupos sociais se apresentam hoje como guardiões não só de saberes, mas de saberes-fazer à medida que coexistem com o contexto social envolvente sem sacrificar suas próprias memórias históricas. Nesse sentido, embora um memoricídio biocultural esteja em curso, atores locais expressam sua espontaneidade criativa a partir de estratégias resilientes que adotam na defesa de seus territórios tradicionais, sistemas de conhecimento e de suas próprias formas de interação com o conjunto da sociedade nacional.
É preciso superar a amnésia biocultural de nossa civilização
Apesar de seu tamanho descomunal, sua linhagem excepcional e de seu poder de transformar o habitat planetário, “a espécie humana ainda precisa, para sobreviver e superar seus desafios atuais, de uma memória que lhe informe sobre sua passagem pelo planeta durante os últimos 200 mil anos” (Toledo e Barrera-Bassols, 2015, p. 27). Para tanto, a humanidade está obrigada a desenvolver estratégias e implementar mecanismos de autoconhecimento para autocontrole das práticas modernas que ameaçam a saúde, sobrevivência e resiliência de si e dos sistemas vivos que suportam a vida no planeta. Como nunca antes, o autoconhecimento de nós humanos está sendo exigido de forma urgente.
Assim, para a superação da cegueira histórica (e historicamente produzida) dos modernos e dos consequentes conflitos, mal-entendidos, instintos destrutivos, turbulências ideológicas e falsas expectativas, será fundamental ativar uma consciência histórica de espécie. Esta deve reconhecer na memória biocultural da humanidade uma possibilidade indispensável de superação da crise de civilização e de visualização, construção e realização de formas de ser e estar no mundo outras onde se conviva, coopere e coevolua com visões de mundo diversas.
Notas
[1] A pegada ecológica calcula a quantidade de recursos naturais renováveis é necessária para manter nosso estilo de vida na Terra. Ela diz respeito à quantidade de recursos naturais que seria necessária para sustentar as gerações atuais tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos gastos por uma determinada população.
[2] A crise ecológica pode ser ilustrada pelos estudos a respeito das “fronteiras planetárias”. Este é o conceito central proposto por um grupo de cientistas e liderado pelo Stockholm Resilience Centre e a Universidade Nacional da Austrália. O quadro a respeito das fronteiras planetárias tem o objetivo de definir um “espaço operacional seguro para a humanidade” e alertar a comunidade internacional sobre riscos eminentes. O quadro é composto por nove indicadores: 1) mudanças climáticas; 2) perda da integridade da biosfera (perda de biodiversidade e extinção de espécies); 3) destruição do ozônio estratosférico; 4) acidificação dos oceanos; 5) fluxos biogeoquímicos (ciclos do fósforo e do nitrogênio); 6) mudança do sistema terrestre (por exemplo, o desmatamento); 7) utilização da água doce; 8) carga atmosférica de aerossóis; e 9) introdução de novas entidades (por exemplo, poluentes orgânicos, materiais radioativos, nanomateriais, e microplásticos). Uma vez que a atividade humana ultrapassa certos pontos de virada destas fronteiras planetárias, existe um risco de mudanças abruptas e irreversíveis de modo que o planeta adentra uma zona de insegurança. Devido à atividade humana, que desde a revolução industrial têm se tornado o principal condutor da mudança ambiental global, algumas dessas fronteiras já foram ultrapassadas (mudanças climáticas, perda de biodiversidade e fluxo biogeoquímico), enquanto outras estão em risco iminente de serem cruzadas. Ademais, duas dessas fronteiras – mudanças climáticas e perda da integridade da biosfera – são consideradas como “fronteiras fundamentais” de modo que, quando ultrapassadas (como já o foram), podem impulsionar o planeta para um novo estado (Rockstrom e Steffen, 2009).
Referências
Rockström, J; Steffen, Wl et al. Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity. Ecology and Society, v. 14, n. 2, p. 1-32, 2009.
Toledo, V.; Barrera-Bassols, N. A memória biocultural. A importância ecológica das sabedorias tradicionais. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
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