Se você quer servir a um mundo melhor, questione suas expectativas auto-referenciadas, abandone suas certezas e relaxe no não-saber
Existe um conforto tremendo em ter as nossas suposições confirmadas. Ancorados na história da separação, no programa de controle e na cultura de escassez, precisamos assegurar que o mundo será transformado para sentir segurança em trabalhar para a sua transformação.
O mesmo conforto surge quando os fatos confirmam a crença de que as coisas sempre serão como são e que o cenário atual é irremediável. Quando nós falhamos na tentativa de gerar mudança e nos percebemos colapsando diante o peso das próprias esperanças e medos, existe uma voz que confirma que estávamos certos. Quando não vemos a mudança que gostaríamos, assumimos que o mundo não é algo que podemos consertar e, então, desistimos do papel de agente de mudança.
Realmente, o mundo não é uma máquina a ser consertada previsível e responsiva às intervenções pontuais. A visão do mundo como um problema a ser resolvido reforça a conclusão equivocada de que nós sabemos exatamente como as coisas funcionam e podemos prever os seus desfechos. Nada pode ser mais desentusiasmante do que o fechamento para a complexidade da vida. Ao contrário, abrir mão da certeza de que o mundo tomará a forma que pretendemos gera uma inesperada criatividade, confiança e vontade de participar.
Enfrentar a obscuridade e o autogoverno do mundo sem se fixar na possibilidade ou impossibilidade da mudança radical é uma saída mais entusiasmante. Abraçar o desespero com curiosidade sem se eximir na Grande Virada em tempos de tremendos retrocessos é uma atitude de grande coragem. Seguir com disposição compassiva sem se proteger em teorias apocalípticas ou salvacionistas é um caminho que faz nosso coração partir a cada experiência assistida de risco, mas que nos leva a sorrir diante a beleza que há em ser surpreendido.
Atravessamos a Primeira Grande Virada com a Revolução Agrícola há dez mil anos. Atravessamos a Segunda Grande Virada com a Revolução Industrial nos últimos séculos. Agora estamos no meio da Terceira Grande Virada para o Ecozóico, uma Revolução Consciencial. Entre outras coisas, ela marca a transição da separação ao interser, do isolamento ao pertencimento mútuo, da noção de valor orientada pelo auto-interesse para a noção de valor intrínseco, do medo do sofrimento ao enfrentamento compassivo da dor, do apego às certezas ao relaxamento no não-saber, da massificação dos sujeitos à celebração da dádiva que cada ser é no mundo.
Ela tem um impacto tão grande quanto as duas primeiras, mas não vai ser noticiada nos jornais. A sua natureza é auto-organizada. Não temos certeza do seu resultado, e é essa incerteza que nos faz movimentar. A única certeza que temos é que somos capazes de participar. Atravessar o campo do medo, dúvida, desesperança, raiva e culpa é a porta de entrada para a participação responsável. Nesse campo de batalha estamos todos juntos.
“O maior presente que você pode dar ao mundo é estar absolutamente presente. Quando você está preocupado se está esperançoso ou desesperançoso, otimista ou pessimista, quem se importa? O principal é que você está se posicionando, que está aqui e que está encontrando cada vez mais capacidade de amar este mundo — porque ele não será curado sem isso. Isso é o que vai liberar nossa inteligência, engenhosidade e solidariedade para a cura do nosso mundo.” — Joanna Macy
Comece pelo lugar
“Salvar o planeta” não é uma boa motivação para o engajamento na Grande Virada. Para Charles Eisenstein, uma melhor motivação é achar algo que amamos e cuidar disso expandindo o escopo do nosso afeto para incluir diferentes expressões da vida. Talvez sejamos apaixonados por alguma paisagem, espécie, bioma, grupo de pessoas, comunidade, território, organização etc.
Nós não precisamos ter como motivação uma causa global — como salvar a Amazônia, conter as mudanças climáticas ou superar o patriarcado — para cuidar de algo que seja precioso. Tudo o que precisamos fazer é amar algo e cuidar para deixá-lo vivo e saudável. O que nós precisamos agora é da oferta dos dons de pessoas conectadas à noção de um planeta vivo dispostas a viver as suas vidas de forma sagrada, compassiva e cooperativa.
Embora não seja fácil, isso é simples. É bem mais simples do que quase tudo que imaginamos ser necessário para salvar o mundo. Com essa motivação temos a energia necessária para servir com criatividade. Estando onde estamos e fazendo o que podemos com os recursos que estão ao alcance das nossas mãos podemos criar uma relação evolutiva com o nosso entorno.
O macro-cenário vai piorar. A regeneração é local. A resiliência ao colapso está na visão que concebe a conexão intrínseca entre o global e o local e que catalisa ações locais em direção à transformação sistêmica. Na ação informada pelo local está a possibilidade de oferecer ao mundo a nossa melhor contribuição. Para escalar a saúde de um território e ajudá-lo a fazer evoluir o seu todo mais amplo precisamos participar apropriadamente desse território. Onde estamos podemos promover o entusiasmo nas pessoas ao convidá-las a participar de uma rede co-evolucionária a serviço da saúde e vitalidade das suas comunidades.
O que você quer receber do mundo?
Como ele precisa ser para apoiar a revelação do seu potencial?
Fazer essas perguntas a nós mesmos nos ajuda a entender de que forma o mundo precisa de nós porque o que temos para oferecer ao mundo ajuda o mundo a alcançar o seu melhor potencial e, consequentemente, a nos ajudar. Afinal, fazemos parte de uma relação cooperativamente simbiótica. A nossa melhor contribuição é aquilo que podemos ser — mais do que fazer — para sustentar a capacidade do mundo nos oferecer o que nós desejamos dele receber.
“Se o mundo deve ser curado por meio de esforços humanos, estou convencida de que será por pessoas comuns, pessoas cujo amor por essa vida é ainda maior do que seu medo.” — Joanna Macy
[Este texto é parte do material de apoio da jornada Em busca da visão – propósito pessoal a serviço de Gaia. As inscrições estão abertas!]
Referências
Charles Eisenstein. O mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível. Palas Athena, 2016.
Joanna Macy e Molly Young Brown. Nossa vida como Gaia: Práticas para reconectar nossas vidas e nosso mundo. Gaia Editora, 2004.
Foto: Cesar Carlevarino Aragon