O amortecimento da dor
“Resistir a informações dolorosas, alegando que não podemos fazer nada, resulta menos da impotência (medida pela nossa capacidade de efetuar mudanças) do que do medo de nos sentirmos impotentes.” — Joanna Macy
Nós pensamos que o fato de reproduzirmos globalmente resultados que não queremos se deve à ignorância e indiferença das pessoas em relação ao que precisa ser transformado. É comum pensar que as pessoas não têm noção do que está acontecendo no mundo ou que, se sabem, simplesmente não se importam. No entanto, todos os dias somos confrontados com notícias que evidenciam a insanidade humana. Nos noticiários isso é tudo o que se veicula e é como, inclusive, se faz audiência. As dores do mundo estão evidentes. Apesar disso, permanecemos indiferentes.
Mas essa não é uma indiferença fruto da insensibilidade humana. No fundo, nós nos importamos e, porque nos importamos, não conseguimos lidar com as patologias sociais de forma consciente e engajada. Reconhecer isso significa dar um voto de confiança para a bondade humana. As pessoas sabem e se importam com o que está acontecendo. A destrutividade da ação antrópica persiste porque temos dificuldade em lidar com as emoções que emergem quando somos desafiados a assumir a nossa responsabilidade na Grande Virada.
A indiferença e a apatia são estratégias de amortecimento. Elas são mecanismos de proteção contra o medo que surge quando um desafio parece ser muito maior do que nós e acreditamos não ter os recursos e as condições necessárias para enfrentá-lo. Mas, apesar de servirem à autopreservação, elas são contraproducentes com uma visão de futuro em que a humanidade e o planeta prosperam. A realização dessa visão depende da nossa capacidade de construir um mundo melhor a partir da digestão interior do cenário desolador que se apresenta agora.
Além da apatia
“Ser capaz de sofrer é uma boa notícia porque significa que você pode compartilhar poder, alegria e amor. Deixe a sua dor dizer que você não está sozinho. O que pensávamos que poderia nos separar é propriamente o que nos conecta.” — Joanna Macy
A apatia surge do medo de não ter a estabilidade necessária para abraçar o sofrimento sem ficar sobrecarregado. Mas nós temos a capacidade de lidar com o desconforto da dor que sentimos quando somos invadidos pelos sintomas do mundo. Na nossa própria dor emocional encontramos a força para lidar com os desafios do nosso tempo. E sempre que encontramos força para ir ao encontro do sofrimento, descobrimos que não somos tão impotentes quanto pensamos ser. Essa é a mensagem que Joanna Macy, uma das maiores ativistas a serviço da justiça ecológica e social, dedicou a sua vida a compartilhar.
“Quando perguntaram ao poeta zen Thich Nhat Hanh ‘Do que nós mais precisamos para salvar o mundo?’ as pessoas esperavam que ele identificasse as melhores estratégias a adotar nas causas sociais e ambientais. Mas Thich Nhat Hanh respondeu: ‘O que nós mais precisamos fazer é ouvir dentro de nós os sons da Terra chorando’. Quando aprendemos a ouvi-los, descobrimos que nossa dor e nosso amor pelo mundo são a mesma coisa. E isto nos faz mais fortes. Como células vivas em um corpo maior, nós sentimos o trauma de nosso mundo. É natural e mesmo saudável que o façamos porque isto mostra que ainda estamos vitalmente conectados à teia da vida. Então, não tenha medo da tristeza que você poderá sentir ou da raiva ou medo: estas respostas surgem não de uma patologia particular, mas das profundezas do nosso pertencimento mútuo. Reverencie sua dor pelo mundo quando ela se fizer sentir, e a honre como testemunha de nossa interconectividade.” — Joanna Macy
Experimentar a dor é uma tarefa urgente porque a menos que nós possamos ouvir a nossa própria tristeza, medo e desesperança não podemos ouvir o choro da Terra. Devido à inescapável realidade do interser, o que sentimos é propriamente o que se passa com ela. Nós não apenas fazemos parte do planeta, nós somos a Terra. Mas só vamos ser sensibilizados por suas dores quando formos suficientemente sensíveis para perceber a nossa própria dor. Esse é um ato subversivo e revolucionário.
Joanna diz que a coisa mais importante a ser feita hoje é abrir os nossos olhos para ver os problemas do mundo e abrir o nosso coração para sentir o seu sofrimento. Nós precisamos falar sobre o que machuca o nosso coração porque a visceralidade da dor é algo que nos conecta profundamente à vida. É preciso sentir tristeza pelo que estamos perdendo. De acordo com a WWF-Brasil, uma respeitável ONG que trabalha para a reverter a trajetória global de degradação ecológica, mais de dez mil espécies são extintas por ano. Diante essa realidade é esperado e desejável sentir tristeza e desespero. Nós devemos lamentar tamanha beleza e preciosidade perdidas quando cada nuance de vida se esvai do planeta.
A civilização moderna quer nos fazer acreditar que é sinal de fraqueza sentir tristeza porque ela lucra ao privatizar o que é comum. Ela privatiza a tristeza compartilhada pela humanidade e vende algo que promete trazer felicidade individual. O tecnicismo e o consumismo se sustentam porque aceitamos trocar o que é verdadeiro e vivo por coisas que são falsas e mortas. Assim, transforma-se em privado e vendável aquilo que é compartilhado e inegociável.
Como lidar com a dor?
“Diante da tristeza que encontramos nesta vida, temos uma escolha: nossos corações podem se fechar, nossas mentes recuar, nossos corpos contraírem e podemos experimentar o coração que vive em um estado de dolorosa recusa. Podemos, também, mergulhar profundamente dentro de nós mesmos para nutrir a coragem, estabilidade, paciência e sabedoria que nos permitem curar o sofrimento.” — Christina Feldman
Christina Feldman, professora de programas acadêmicos relacionados à atenção plena e psicologia budista, diz que, embora abrir o coração ao sofrimento possa parecer nos fazer sofrer mais, os lamentos ouvidos nos tornam mais capazes de atender aos seus pedidos implícitos. De fato, a tomada de consciência aumenta a nossa sensibilidade e implica sentir solidão, medo e impotência frente cenários de sofrimento antes invisíveis. No entanto, ela também nos ensina a ler nas entrelinhas e a ver além das aparências.
Para tirar as vendas dos olhos e ver, mesmo com o coração machucado, o que está acontecendo nós precisamos lidar com o sofrimento de uma outra forma que não seja temendo-o. O temor ao sofrimento não vem da dor em si, mas de não querer experiencia-la devido às avaliações cognitivas que fazemos sobre ela. Em outras palavras, o sofrimento é resultado do esforço que fazemos para segurar a dor longe de nós. Ele cresce quanto mais achamos que não deveríamos sofrer.
Quando não há medo do sofrimento, a dor simplesmente passa através de nós. Quando permitimos que a dor nos atravesse, percebemos que ela é apenas um lado da moeda, e que o outro lado é a nossa inseparatividade e interconectividade. A dor é um sintoma de se estar vivo. Se não sentimos dor pelo mundo não podemos perceber o pertencimento mútuo entre nós e tudo que participa da vida. Sem isso seguiremos causando a nossa própria morte porque continuaremos agredindo o nosso mundo.
Emoções, uma força incrivelmente poderosa
“O coração que se abre pode conter o universo inteiro.” — Joanna Macy
A psicologia define a emoção como um estado que resulta em mudanças físicas e psicológicas que, por sua vez, influenciam o pensamento e o comportamento. Segundo Paul Ekman, o psicólogo que desenvolveu a “teoria da universalidade das emoções”, as emoções cumprem funções importantíssimas na vida humana. Entre outras coisas, elas exercem uma função adaptativa, isto é, preparam o organismo para a ação nos permitindo mobilizar e utilizar a energia suficiente e necessária para nos aproximar ou afastar dos objetivos pessoais em cada situação.
Nesse sentido, não há como nem porquê evitar as emoções mesmo que elas sejam dolorosas. Ao fazê-lo estamos impedindo que elas cumpram a função de nos dirigir a um comportamento coerente com a necessidade percebida. Suprimir as emoções dolorosas acreditando estar se protegendo impede que a sua mensagem seja ouvida. Fugir do sofrimento endurecendo o coração e dando costas à dor é negar a própria vida. Uma vida pautada em negação e defesa é uma vida de dolorosa separação e um tremendo despropósito pessoal e coletivo.
Mas só sentir a dor emocional não basta. Nós sofremos muito e nem por isso somos mais responsáveis. Quando evitar as emoções dolorosas não é mais uma opção, nós costumamos ficar aficcionados no trauma elaborando histórias para justificar o nosso sofrimento. Agora nós precisamos de um novo jeito de experienciar a dor. Além de entender que a resistência a agrava e a torna permanente, é importante vivê-la de forma menos autocentrada.
Nós tendemos a acreditar que só nós temos os problemas quando, na verdade, o que nos acontece acontece também a quase toda a humanidade. Quando sofremos, precisamos lembrar que há muita gente sofrendo pelos mesmos motivos que nós. O nosso sofrimento perde o peso que têm quando admitimos, sem deslegitima-lo, que ele é um retrato do sofrimento do mundo e que não nos faz piores, mais injustiçados ou mais vítimas do que o outro.
Raiva, paixão por justiça
“Aprendi através da experiência amarga a suprema lição: controlar minha ira e torná-la o calor que é convertido em energia. Nossa ira controlada pode ser convertida numa força capaz de mover o mundo.” — Mahatma Gandhi
A raiva, a culpa e o medo são emoções especialmente difíceis para nós. Joanna diz que a raiva é uma expressão de paixão pela vida e pela justiça. Ela pode ser o começo do abandono ou o começo do compromisso de ajudar a si e aos outros. Para aproveitar o seu potencial, nós devemos investigá-la buscando as razões que a faz surgir.
Ela surge como resposta adaptativa de autodefesa e, por isso, deve esconder alguma outra emoção que nos faz sentir ameaçados. Toda raiva esconde uma dor. Quando a dor recebe atenção, a raiva se transforma em comprometimento com a causa que queremos defender e não em armas contra a quem lutar. Quando nos conectamos com a dor que sentimos, restabelecermos a nossa conexão com as pessoas e com o mundo. Essa conexão é um direito de nascença e a sua perda traz malefícios grandes demais para ser suportados.
Culpa, convite para a integridade
“Estou firmemente convencido que só se perde a liberdade por culpa da própria fraqueza.” — Mahatma Gandhi
A culpa gera uma agitação incômoda e mantém contraído o nosso coração levando-nos ao desespero. Apesar de indicar que há algo que poderia ser diferente e que existe uma lacuna de valores entre quem queremos ser e o que estamos praticando, a culpa é uma emoção que mina a nossa vontade. Ela é como uma sereia que nos encanta e nos leva a um poço profundo de lamentação e impotência.
Para se precaver à culpa é preciso suspender o escudo do perfeccionismo contra a vulnerabilidade que nos faz acreditar que não podemos errar. A culpa, irmã gêmea da vergonha, é vivida como uma experiência de ruptura e separação com aquilo que é realmente importante.
Renunciá-la é manter a sabedoria discriminativa que conhece as causas do sofrimento e que não se ilude com os discursos sabotadores da auto-imagem idealizada. Cuidar da culpa é fundamental porque mudanças significativas nascem da aceitação do sofrimento e das nossas limitações. Metabolizar a culpa é abdicar da sensação de separação que torna a compaixão impossível.
Contemplar a vida, antídoto para o medo
“Estar vivo neste universo belo e auto-organizado — participar da dança da vida com sentidos para percebê-lo, pulmões que respiram, órgãos que alimentam-se dele — é uma maravilha além das palavras.” — Joanna Macy
Estar vivo é um privilégio. É a constatação de pertencimento à teia da vida. Isso é suficiente para que sejamos gratos a ponto de não mais temer cenários de desgraça. Se vivemos com medo não-administrável não podemos ser gratos pela vida porque, para nos proteger daquilo que tememos, vamos nos anestesiar de alguma forma. Nesse estado a vida não se torna consciente de si e não celebra a si mesma através de nós.
Nós não precisamos manipular o sofrimento por achar que ele significa que há algo errado ou a ser consertado. Nós podemos ouvir a Terra chorando e simplesmente ficar com isso. Essa é a semente de um coração corajosamente compassivo. Nós somos capazes de desenvolver inteligência sobre o nosso mundo interno de forma a realizar um ativismo radicalmente compassivo no mundo externo. Nós somos capazes de transmutar a dor transformando o sofrimento em ação inteligente.
De acordo com Rudolf Steiner, a humanidade vive o processo de evolução do pensar cotidiano para o pensar contemplativo. Quando passamos a ver o mundo através da lente da contemplação, somos capazes de honrar e reconhecer a sacralidade de cada evento. Em vez de resistente ou reacionária, desenvolvemos uma postura curiosa. Nós encontramos a beleza da existência mesmo na dor porque sabemos que ali há algo sagrado querendo se revelar. É essa revelação que nos leva a tocar a essência de quem somos e de quem podemos nos tornar. Seja o que for, devemos torná-lo sagrado. Isso nos permite atravessar o medo profundamente conectados à vida.
Desprivatizar a dor e despatologizar o indivíduo
“É difícil acreditar que sentimos dor pelo mundo se assumirmos que estamos separados dele. O viés individualista da cultura ocidental sustenta essa suposição. Sentimentos de medo, raiva ou desespero em relação ao mundo tendem a ser interpretados em termos de patologia pessoal. Nossa angústia sobre o estado do mundo é vista como decorrente de alguma neurose enraizada no trauma infantil ou em questões não resolvidas com uma figura paternal que estamos projetando na sociedade. Assim, somos tentados a descreditar os sentimentos que surgem da solidariedade com nossos semelhantes.” — Joanna Macy
Para transpor o sofrimento é crucial superar a patologização do indivíduo. A maioria dos diagnósticos de depressão diz respeito à vivência de um cotidiano onde falta sentido. Outros casos têm a ver com experiências prolongadas de dor e trauma no contexto familiar ou social. Em ambos os casos estamos falando de questões cujas raízes estão na visão de mundo e na forma de operar de toda uma sociedade. É do interesse de grandes grupos industriais e comerciais convencer a população global de que “correr, crescer, consumir” é normal e a não adaptação das pessoas a esse contexto é patológica.
As causas e condições para uma vida que faz sentido não são promovidas. A voz que clama por conexão e autenticidade é abafada. A rejeição ao sofrimento e a evitação da dor são incentivadas. Quando não conseguimos fazer isso, somos considerados fracos e fracassados. Então, somos medicados para que os sintomas sejam mascarados quando a nossa “patologia” é a única coisa que nos conecta com a busca por uma vida que valha a pena.
Certamente, a saída de um cenário psíquico desolador está em cuidados psicoterapêuticos que cuidem das idiossincrasias das pessoas. Há inúmeras maneiras de fazer isso competentemente e sem negligenciar as causas sistêmicas encobertas pelos sintomas particulares. Mas, para além das soluções limitadas à ação individual, nós precisamos penetrar na dor coletivamente. Precisamos desprivatizar a dor reconhecendo que “a minha dor não é só minha”.
Despatologizar o indivíduo é um serviço compassivo que prestamos àqueles que manifestam esses sintomas e se sentem menores por isso. É uma forma de resistir à hiper-individualização e à cultura da escassez competitiva que alimenta a sociedade de crescimento industrial. Se considerarmos a natureza interdependente da realidade é impossível não sofrer em um mundo em sofrimento. Afinal, como dito pelo filósofo indiano Jiddu Krishnamurti, “não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente”.
A dor é uma resposta natural ao pertencimento mútuo. O adoecimento dos seres é o nosso próprio adoecimento. Não é possível ter desenvolvimento saudável descolado de um mundo que se relaciona de forma doentia com a natureza e com a humanidade. Todos nós padecemos de déficit de natureza e de relações autênticas — nossas principais fontes de saúde e vitalidade. Existe uma conexão inescapável entre a condição da Terra e da nossa mente e entre a saúde planetária e a nossa saúde e bem-estar. A crise da ecologia planetária se manifesta através de nós enquanto crise civilizatória e crise psíquica.
Reconhecer a interface entre as “doenças” pessoais e as dores da Terra, e criar espaços para viver a dor coletivamente é a tarefa do nosso tempo. Nós só cuidamos daquilo que amamos, e não podemos amar o que não vemos e com o que não nos relacionamos. Para que possamos ver e sentir o que há tanto tempo tem sido ignorado, precisamos criar espaços seguros onde escutamos a nossa dor e celebramos o que ela nos revela. É na dor sentida pelo mundo onde habita a capacidade de participar da cura planetária. Somos convidados a penetrar na dor coletivamente honrando-a como resposta ao fato de que nos importamos com o destino de Gaia.
[Este texto é parte do material de apoio da jornada Em busca da visão – propósito pessoal a serviço de Gaia]
Referências
Christina Feldman. She who hears the cries of the world, 2018.
Joanna Macy e Molly Young Brown. Nossa vida como Gaia: Práticas para reconectar nossas vidas e nosso mundo. Gaia Editora, 2004.
Paul Ekman. A linguagem das emoções. Leya, 2011.
Rudolf Steiner. A Filosofia da Liberdade: Fundamentos para uma filosofia moderna. Antroposófica, 2008.
Foto: Coletivo Libertário de Apoio aos Povos Ameríndios