Terra, mosaico de biorregiões - instituto de desenvolvimento regenerativo

Terra, mosaico de biorregiões

Ao longo da vida construímos a imagem da Terra como um bloco monolítico de superfície plana. Dificilmente conseguimos ter viva a imagem de estarmos gravitacionalmente conectados à superfície de um organismo superdiverso que dança no vazio cósmico.

A Terra não é um bloco. É um conjunto de regiões altamente diferenciadas e articuladas entre si. E cada um de nós fazemos parte de alguma de suas paisagens. Inevitavelmente, o lugar onde estamos é parte do que somos. Reciprocamente, alguma biorregião depende da nossa participação apropriada na sua ecologia.

Nesse sentido, o senso de não-pertencimento que alguns de nós carregamos está relacionado diretamente com a nossa falta de identificação com um lugar, uma paisagem, uma biorregião da qual somos parte. A qual biorregião você pertence?

O que são biorregiões?

A formação geológica, as condições climáticas e as formas de vida particulares que se expressam em um determinado lugar compõe o que chamamos de biorregiões. A Terra é um mosaico de biorregiões.

Biorregiões são comunidades vivas dotadas de uma coerência interna cuja diversidade de funções vitais se dá através dos componentes físicos e orgânicos e do relacionamento entre eles. Elas podem ser entendidas também como áreas geográficas com características distintas sendo relativamente autossustentáveis e dotadas de processos vivos em contínua renovação. A saúde de cada sistema vivo depende da articulação do seu funcionamento à biorregião a que pertence (Berry, 1991).

Diferente da maneira como se estabelecem divisões políticas – sem lastro em critérios bioculturais – as biorregiões partem de referenciais naturais, geográficos, topográficos e culturais para compor seus limites. Elas circunscrevem uma área definida pelos rios e montanhas com um tipo particular de vegetação e terreno e mostra uma cultura própria com tradições construídas localmente (Boff, 2015).

As experiências subjetivas vivenciadas em uma biorregião influenciam definitivamente em sua formação. A participação da subjetividade humana e das culturas locais na definição dos seus limites são, nesse sentido, um dos aspectos centrais que as fazem diferentes de todas as outras categorizações ecológicas para o espaço.

As seis propriedades de uma biorregião

A biorregião é o cenário doméstico de cada comunidade viva e seu funcionamento se dá, de acordo com Thomas Berry (1991), através de seis propriedades principais: auto-reprodução, auto-alimentação, auto-educação, auto-determinação, auto-regeneração e auto-realização.

Auto-reprodução

A auto-reprodução trata do direito de cada espécie a um habitat próprio, às suas rotas de migração, ao seu lugar na comunidade e ao exercício de sua função ecossistêmica.

A expansão colonizadora da humanidade sobre a Terra excluindo outras formas vivas de seu habitat natural compromete uma das estruturas mais fundamentais da vida: o direito à existência. Na medida que faz isso, o ser humano declara guerra à natureza. No entanto, essa é uma guerra que ele jamais poderá vencer já que ele depende absolutamente das formas vivas que está destruindo.

Auto-alimentação

A auto-alimentação estabelece um padrão limitador para a expansão de espécies que contribui, por sua vez, para o bem-estar da biorregião. A expansão de cada espécie é limitada por outras espécies ou por condições climáticas a fim de que nenhuma possa prevalecer completamente sobre a outra.

Além disso, através da propriedade da auto-alimentação, os membros da comunidade viva oferecem as condições propícias para a existência um do outro fazendo com que o sistema opere com entropia mínima. Diferente da esterilidade e da produção de resíduos tóxicos criados pelas indústrias humanas, os sistemas vivos operam com altíssimo nível de produtividade e reaproveitamento de resíduos.

Auto-educação

O processo evolutivo da Terra é o mais incrível processo de auto-educação de que se pode tomar nota. A terra e suas diversas biorregiões têm realizado ao longo de bilhões de anos inúmeros experimentos mediante os relacionamentos que são criados entre os padrões físicos, químicos, biológicos e culturais. As biorregiões aprendem sobre si mesmas à medida que experimentam os relacionamentos que se dão entre esses padrões no espaço e no tempo.

O aspecto experimental do processo de auto-educação das biorregiões é um dos mais incríveis modelos para a educação do ser humano. Não há outro meio de o ser humano educar a si mesmo em direção à sua sobrevivência e realização se não aprendendo com o funcionamento dos sistemas vivos.

Auto-determinação

Há uma ordem funcional em toda biorregião baseada nos princípios de autonomia e auto-determinação. Essa ordem nasce de um vínculo intrínseco entre a comunidade de vida e seus membros de modo a possibilitar que cada um deles participe do governo natural e atinja sua plena expressão vital.

O governo das biorregiões é presidido pelos ciclos sazonais que possibilitam um revezamento democrático na expressão de todas as suas formas de vida. Os rituais humanos de celebração das estações e das espécies que prosperam em cada uma delas é, por exemplo, expressão do princípio de auto-determinação das biorregiões.

Auto-regeneração

Além da capacidade de nutrir cada um de seus membros, uma biorregião detém a capacidade de regenerá-los também. Podemos perceber a função de auto-regeneração ou auto-cura de uma biorregião quando a vemos explorar a fundo seus recursos regenerativos para criativamente superar um distúrbio. Isso acontece, por exemplo, quando uma floresta é devastada por tempestades ou quando campos são assolados por grandes períodos de seca.

Auto-realização

Cada biorregião se realiza através da expressão viva de cada um de seus membros: quando os campos florescem, quando os pássaros brincam no céu, quando as copas das árvores dançam melodias orquestradas pelos ventos.

Quando as comunidades humanas celebram conscientemente o mistério da vida expresso nas singulares qualidades de cada biorregião, elas cumprem o seu papel no processo de auto-realização biorregional. Nesse sentido, a identidade cultural de uma biorregião nasce da forma como os sistemas humanos participam da celebração planetária em reverência às expressões da natureza local.

A sociedade ocidental globalizada têm violado estas propriedades. Temos comprometido o direito à existência dos seres com o nosso antropocentrismo colonizador. Temos operado com entropia máxima, com elevado crescimento populacional e acelerada erosão da biodiversidade. Escolhemos a razão mecânica e dualista para orientar nossas visões de mundo e tentamos, a todo momento, adequar a realidade às teorias ocidentais.

Invalidamos o direito à auto-determinação dos povos e reivindicamos o monopólio sobre a tomada de decisão. Inviabilizamos o direito à livre expressão das culturas humanas e dos sistemas vivos na medida que lhes tiramos a segurança de habitar um território seguro. Prejudicamos a saúde planetária em prol do crescimento econômico infinito que, por sua vez, não atende às necessidades de realização humana.

Harmonizar a ação humana com as propriedades biorregionais é, nesse sentido, um passo fundamental a ser dado em direção à evolução humana e da Terra.

A garantia do direito irrestrito à existência, à livre expressão e à auto-determinação dos seres e dos povos, o estabelecimento de ciclos fechados e reaproveitamento de resíduos industriais, o controle do crescimento populacional e preservação da biodiversidade, a elevação da natureza à condição de mestra e, por fim, a celebração da interdependência entre saúde pessoal e planetária bem como entre a realização humana e o equilíbrio ecossistêmico são componentes obrigatórios da agenda ecológica atual.

As biorregiões e as comunidades humanas

A espécie humana surgiu do processo evolucionário das biorregiões. Foi a partir da interação da espécie humana com as biorregiões de que faziam parte que surgiram as culturas humanas. Todavia, com a ciência moderna e o desenvolvimento tecnológico, o ser humano passou a manipular os processos ecológicos em proveito próprio e, consequentemente, perdeu a consciência de que sua existência depende do funcionamento perfeito dessas comunidades vivas com as quais convive.

O ser humano subverteu a ordem das coisas desenvolvendo técnicas que comprometem o funcionamento dos sistemas vivos na forma, por exemplo, de fertilizantes químicos que forçam a terra a produzir além dos seus ritmos naturais. Com a imposição de padrões mecanicistas aos processos da vida perdemos a capacidade de invocar e colaborar com as forças da natureza. O resultado é a criação de um mundo de fertilidade decrescente.

A ética do controle e da conquista que marca a era moderna tem promovido uma grave ruptura em todo o conjunto dos sistemas vivos. Consequentemente, o comprometimento do funcionamento da ecologia planetária culmina em perdas muito significativas para a comunidade humana.

Estamos progressivamente perdendo as ferramentas que nos capacitam a identificar o mosaico que habitamos e perdendo de vista a noção de que as biorregiões são sistemas vivos a serem descobertos, decodificados e preservados. Em resultado, buscamos remediar os desafios sociais com processos industriais e tecnológicos que agravam a devastação ecológica.

Preocupadas em garantir o acesso privilegiado aos recursos naturais, nações inteiras são incapazes de perceber o perigo associado à erosão do solo, desertificação de terras férteis, destruição das florestas, esgotamento dos cursos de água etc. Apesar de todos os indícios da crise ecológica e mudanças climáticas, os estados nacionais permanecem incapazes de repensar a configuração industrial e financeira de desenvolvimento.

Enquanto isso a mudança da noção de desenvolvimento continua sendo um pré-requisito crucial para a saúde humana e planetária. É urgente desassociarmos desenvolvimento humano e social de crescimento econômico infinito a base da exploração de recursos naturais assim como aderirmos globalmente ao uso de tecnologias apropriadas, a estilos de vida social e ecologicamente adequados e a um equilibrado relacionamento entre o ser humano e a Terra.

É crucial a passagem de uma norma antropocêntrica de progresso para uma norma biocêntrica de desenvolvimento já que o verdadeiro desenvolvimento só é possível com a inclusão de toda a comunidade de vida na Terra. O progresso humano com prejuízo dos sistemas vivos levará, inevitavelmente, à degradação da própria qualidade de vida humana.

Percebe-se, assim, que muitos dos problemas humanos advém da ignorância da influência da natureza na nossa psique. A saúde pessoal só é plenamente possível com a saúde planetária. É a diversidade das paisagens naturais e seus elementos, sons e cores que têm inspirado a nossa forma de conceber o que é divino, que nos torna criativos e nos oferece momentos apropriados para a emergência de grandes insights.

As biorregiões e suas paisagens nos nutrem fisicamente bem como ativam nossas faculdades psíquicas. Física e espiritualmente estamos programados para tomar parte no processo da vida (Berry, 1991).

Para tanto, a solução é tão simples quanto desafiadora. O ser humano deve unir-se novamente à comunidade viva como seu membro participante promovendo a prosperidade das biorregiões a que pertence. O futuro da humanidade depende do cumprimento do seu papel em cada uma das seis funções biorregionais.

A menos que cada biorregião cumpra as suas funções essenciais, o planeta não consegue permanecer saudável. Assim como o organismo humano depende do bom funcionamento dos órgãos, a saúde planetária depende da saúde das montanhas de onde brotam as águas doces, dos vales onde as terras férteis prosperam em biodiversidade, das zonas glaciais que sustentam a temperatura apropriada para a vida nos oceanos e de todas as suas demais paisagens.

Biorregiões: pela superação dos estado-nações

Naturalmente, a Terra não é composta por nações, mas por biorregiões interligadas. O estabelecimento de nações burocratizadas e fragmentadas não corresponde ao modo particular como funcionam as biorregiões existentes em seus limites. Consequentemente, as divisões nacionais, autoritárias e sem lastro natural, levam os países a sofrerem de falta de vitalidade e de autonomia.

Contribui para isso o fato de os países explorarem uma biorregião em benefício de outras e, por isso, guerrearem entre si com um arsenal bélico capaz de destruir todo o planeta. É o caso das mineradoras, hidrelétricas, monoculturas, pecuária extensiva etc., instaladas em áreas ricas em biodiversidade, engajadas na exploração de recursos locais em benefício de cidades com altíssima densidade populacional e capacidade de consumo.

O pensamento biorregional nos alerta que o maior perigo para a Terra e a humanidade não está nas questões sociais ou na ameaça nuclear, mas no processo de exploração irresponsável legitimado socialmente que extingue os sistemas vivos e compromete o funcionamento das biorregiões de que depende a existência humana.

Por isso, é tarefa fundamental de cada país identificar as suas biorregiões e tomá-las como ponto de partida para o exercício da governança. Além de certo contorno geográfico, cada biorregião possui certos modos místicos e sutis de auto-identificação.

Ironicamente, as pessoas altamente capazes de identificar as sutilezas dos limites biorregionais e gerenciar com sabedoria os recursos particulares de cada biorregião estão tendo seu direito à auto-determinação perseguido. É o caso dos povos indígenas em todo o mundo e, especialmente no Brasil, das comunidades quilombolas e das populações tradicionais.

A identificação das biorregiões e a adaptação dos processos de exploração e gestão dos recursos naturais aos desenhos biorregionais é tarefa de todos. É uma tarefa que nos exige a responsabilidade e a sensibilidade de um xamã e deve ser assumida por cada um de nós à medida em que participamos desse processo que só agora começamos a compreender.

Biorregionalismo e o bem viver

A biorregião é o contexto que permite superar a sustentabilidade retórica. Enquanto a sustentabilidade convencional privilegia o estado, o crescimento econômico ilimitado, a centralização, hierarquização e governo da maioria, a globalização dos costumes, o consumismo e o individualismo; o biorregionalismo centra-se na comunidade, na conservação, adaptação, suficiência e cooperação, na descentralização, subsidiariedade, participação coletiva e busca por consenso e na diversidade biocultural e desenvolvimento inclusivo (Boff, 2015).

SUSTENTABILIDADE CONVENCIONAL BIORREGIONALISMO
ESCALA ESTADO REGIÃO

COMUNIDADE

ECONOMIA

EXPLORAÇÃO

CRESCIMENTO ILIMITADO

CONSERVAÇÃO

ADAPTAÇÃO

SUFICIÊNCIA

COOPERAÇÃO

POLÍTICA

CENTRALIZAÇÃO

HIERARQUIZAÇÃO

GOVERNO DA MAIORIA

DESCENTRALIZAÇÃO

SUBSIDIARIEDADE

PARTICIPAÇÃO

CONSENSO

CULTURA GLOBALIZAÇÃO

CONSUMISMO

INDIVIDUALISMO

TECNOCRACIA

VALORIZAÇÃO DA DIVERSIDADE

DESENVOLVIMENTO INCLUSIVO

O biorregionalismo propõe o uso autogestionário, inspirado pelos povos nativos, de cada biorregião de modo que qualquer ação humana em um território leve em conta toda a região envolvida: o fluxo dos rios, as cadeias de montanhas, os ventos predominantes, as espécies animais e vegetais e as tradições culturais ali existentes.

As comunidades tradicionais têm demonstrado serem as únicas capazes de respeitar e incluir os não-humanos presentes em sua biorregião nas estratégias de manejo. Isso porque elas parecem ter uma consciência enraizada no suprir e prover ao invés do explorar. Portanto, a definição de limites biorregionais como base para a tomada de decisão quanto à instalação de empreendimentos, criação de áreas de conservação, gestão e manejo de bacias e florestas etc. deve contar com a sábia participação das populações locais.

A tarefa básica do biorregionalismo é tornar os habitantes participantes dos processos vitais do lugar onde vivem. É importante que eles conheçam os solos, as florestas, os animais, as águas, o rumo dos ventos, os climas e microclimas, os ciclos das estações, os alimentos sazonais, as estruturas sociais das comunidades locais e os ensinamentos dos mestres tradicionais. Os povos indígenas e as populações tradicionais, ancestralmente territorializados, são mestres nestas matérias. São os guardiões da memória biocultural da humanidade.

A economia biorregional se propõe a satisfazer as necessidades humanas fundamentais e a realizar o bem viver respeitando o alcance e os limites dos ecossistemas. O biorregionalismo resgata, portanto, o sentido originário de economia: satisfazer as necessidades humanas e, ao mesmo tempo, criar as condições para o cuidado e a prosperidade da vida.

Em síntese, o biorregionalismo faz o convite para substituirmos o “viver melhor” pelo “bem viver” (ética andina de suficiência) e o progredir egoísta pelo conviver. Ele sugere fortemente que os direitos humanos e sociais tenham a mesma relevância que os direitos da Terra. Em outras palavras, que as necessidades humanas sejam consideradas tão importantes quanto o equilíbrio da ecologia planetária.

_

A qual biorregião você pertence?
Uma dica para começar essa investigação é pensar em quais paisagens você se sente encaixado e por quais tradições você se sente inspirado.

Que você se sinta motivado a encontrar o seu lugar. Que você possa se engajar na realização do seu papel único no lugar a que pertence, no lugar que precisa de você.

Referências

Leonardo Boff (2015). O biorregionalismo como alternativa ecológica para o “bem viver”.

Leonardo Boff (2015).  Uma economia centrada no biorregionalismo.

Gary Snyder (2018). A Prática da Natureza Selvagem.

Thomas Berry (1991). O sonho da Terra.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

Deixe um comentário