Cerimônias de rito de passagem ricas em significados compartilhados culturalmente são parte do cotidiano dos povos indígenas e populações tradicionais. Elas são o marco de transições e transformações importantes e ajudam as pessoas a tomarem posse de seus dons singulares em benefício do bem comum.
Elas costumam acontecer em momentos marcantes da biografia humana: no próprio nascimento, no fim da primeira infância, na puberdade, na entrada da fase adulta, no nascimento dos filhos, na incorporação de um novo papel familiar ou social, na entrada da velhice etc. E, em algumas tradições, acontecem também em momentos de crise em que nos foge a saúde ou a lembrança de quem somos, do que realmente importa e de como podemos servir ao mundo.
Propagou-se pela internet um texto poético da ativista pelos direitos humanos Tolba Phanem que descreve como a não-violência e a dignidade humana incondicional — em oposição à estereotipação, condenação e repressão — alicerçam uma cerimônia de origem africana que honra a natureza compassiva do ser humano.
“Quando uma mulher, de certa tribo da África, sabe que está grávida, segue para a selva com outras mulheres e, juntas, rezam e meditam até que apareça a “canção da criança”. Nascida a criança, a comunidade se une para lhe cantar a sua canção. Logo, quando a criança começa sua educação, os habitantes da tribo unem-se novamente, e lhe cantam sua canção. Quando se torna adulto, novamente, unem-se e cantam essa melodia. Quando chega o momento do seu casamento a pessoa escuta a sua canção. Finalmente, quando sua alma está para deixar este mundo, a família e amigos aproximam-se e, como no momento de seu nascimento, cantam a sua canção para acompanhá-lo na viagem.
Mas há outra ocasião na qual os integrantes desta tribo africana cantam a canção: se em algum momento da vida a pessoa cometer um crime ou um ato social aberrante. Levam-no até o centro do povoado onde as pessoas da comunidade, formando um círculo ao seu redor, cantam a sua canção com toda a alma. A tribo reconhece que a correção para as condutas anti-sociais não é o castigo: é o amor e a lembrança de sua verdadeira identidade. Quando reconhecemos nossa própria canção já não temos desejos nem necessidade de prejudicar ninguém. Teus amigos conhecem a tua canção e a cantam quando a esqueces. Aqueles que te amam não podem ser enganados pelos erros que cometes ou as escuras imagens que mostras aos demais. Eles recordam tua beleza quando te sentes feio, tua totalidade quando estás quebrado, tua inocência quando te sentes culpado e teu propósito quando estás confuso.”
— Canção dos homens, Tolba Phanem
As cerimônias modernas
Hoje, no contexto da civilização moderna, além de estarmos submetidos ao hábito social da estigmatização, ao direito repressivo e à criminalização desumanizada, nós experienciamos rituais dissociados da dimensão sagrada da vida e destituídos de sentido de base comunitária. A sutileza, a presença, a atenção, a conexão, definitivamente, não são as palavras que melhor qualificam as nossas “cerimônias”.
Aniversários, formaturas, casamentos, mudanças de emprego etc. geralmente envolvem festas desgastantes e presentes entediantes para os anfitriões. Embora o consumo e a aparência sejam a sua marca central, há necessidades essenciais que estão querendo ser, equivocadamente, cuidadas.
No fundo, o que queremos é reunir pessoas importantes, comungar o sagrado, celebrar conquistas e sermos reconhecidos por elas. Mas o efeito de ter as nossas necessidades cerimoniais e comunitárias terceirizadas para presentes materiais, encontros triviais e mídias sociais é o de mascarar as necessidades reais e nos fazer perder o contato com as nossas transições naturais.
Assim como as estações do ano, nós mudamos e, tão logo, precisamos viver cerimônias para celebrar a natureza transitória dos ciclos da vida. Os ritos cerimoniais de passagem, espelhados na natureza, nos levam de um estágio para o próximo. Eles são a ponte. Eles devem nos proporcionar a lembrança em retrospecto do que fomos, o aconselhamento pelos mais velhos de quem devemos ser e o incentivo da comunidade para o que podemos manifestar. Eles devem funcionar como um lugar interior onde sempre podemos voltar para reunir a força necessária em momentos de pressão e sofrimento.
A necessidade humana de iniciação
A falta de celebração e cerimonialização do que importa na vida é, junto com o atentado à individualidade promovido pela educação homogeneizante, a causa da atual epidemia de “falta de sentido”. A depressão, a ansiedade, os vícios, a rendição a ofícios desumanizantes e a busca desesperada pelo propósito são sintomas da necessidade humana de ter uma vida significativa cuja marca é a iniciação. Nós queremos ser iniciados à uma vida potente e em um mundo vibrante.
A imagem adolescente de uma vida adulta contempla um tanto de vigor, liberdade, autonomia, criatividade, poder etc. Então, ficamos adultos e, em contraste com a realidade, aquela imagem se torna uma utopia infantil. Orland Bishop, aconselhador de jovens em risco social e diretor da Shade Tree Multicultural Foundation, diz que ser adulto é compartilhar nossas liberdades e poderes com os outros através de acordos que gerem benefícios mútuos.
Me parece que nós vivemos no limbo entre a infância e a adultez. Nós queremos assumir nossos poderes e habitar um mundo que nos faça sentir vivos — esse é o sintoma da necessidade de iniciação — mas não temos cerimônias significativas e culturalmente compartilhadas que revelem a nossa própria potência e a exuberância do mundo.
Então, as doenças, as crises e os conflitos se tornaram as nossas grandes iniciações. Eles nos forçam à transformação que nos inicia em uma vida mais essencial e mais vigorosa do que aquela ordinária que, através de adversidades, nos indicou a necessidade de mudança.
O papel do sagrado na cerimônia
Charles Eisenstein, no artigo Every Act a Cermony, faz uma importante distinção entre ritual e cerimônia. Ele diz que, embora nós não reconheçamos facilmente, a vida moderna é repleta de rituais. Por definição, rituais envolvem a manipulação de símbolos de uma maneira ou sequência pré-determinada que servem ao propósito de manter os relacionamentos do mundo social e material. Dessa forma, a maneira como nos cumprimentamos, fazemos compras, conduzimos encontros sociais etc. são rituais que, por si mesmos, não são bons nem ruins.
Para Charles, a uma cerimônia é um tipo especial de ritual realizado a partir do reconhecimento da presença do sagrado e da testemunha exercida por forças espirituais. Mas em um contexto social cuja cosmovisão assemelha o mundo à máquina não há lugar para o sagrado. Se não é vista como uma superstição sem sentido, a cerimônia é, no máximo, considerada um truque psicológico para acalmar a mente e focar a atenção.
Diferentemente, os praticantes cerimoniais — em cujas cosmovisões está contemplada a noção de um planeta vivo — são capazes de reconhecer o orquestramento inteligente e além-humano da vida. Entre eles, cerimônias são tempo-espaços intencionalmente desenhados para reverenciar as forças que criam continuamente o mundo, para restabelecer a conexão com o que é essencial e para acolher o chamado daquilo que deve ser feito em direção a um maior alinhamento com a vida.
O efeito concreto dessa visão de mundo e da qualidade perceptiva que ela reforça é o de tornar as pessoas capazes de intervir sendo elegantemente informadas pelas situações nas quais estão intervindo. E de fazê-las saber que, não importa o que fazem, os fenômenos tomam rumos que transcendem a ação pragmática. Desde esse lugar de sóbria humildade nós podemos participar na realização do propósito indicado por uma paisagem, comunidade, organização, encontro etc. incluindo as suas dimensões materiais e imateriais, concretas e sutis, objetivas e subjetivas etc.
Dessa forma, a reinserção de cerimônias autênticas no cotidiano e a descoberta criativa de como nós podemos cerimonializar a vida a partir de inspirações espontâneas sobressaem como meios de restabelecer a conexão aparentemente perdida com o nosso mundo e de sanar o trauma da separação infligido a ele. Através do cultivo da atitude perceptiva que concebe a natureza sagrada da vida, nós podemos:
- nos reconectar com as transições importantes e celebrar a natureza transitória dos ciclos da vida;
- atravessar os momentos marcantes da biografia humana e os momentos de crise com um espírito aventureiro e comprometido;
- suspender os rituais diários automatizados baseados no consumo e na aparência;
- tomar posse de nossos dons singulares e agir em nome de um propósito que transcende o auto-interesse;
- superar a epidemia de “falta de sentido” e cumprir o rito de passagem da nossa infância à nossa adultez — enquanto indivíduos e enquanto espécie.
“A cerimônia define o tom de cada ato e palavra alinhando-os com o que realmente somos, o que queremos ser e o mundo em que queremos viver. A cerimônia oferece um vislumbre de um destino sagrado, um destino em que: Todo ato é uma cerimônia. Toda palavra uma oração. Toda caminhada uma peregrinação. Todo lugar um santuário.”
— Charles Eisenstein
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Este é um fragmento do artigo Sobre a busca de visão.
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Foto: Martin Adams
Excelente, inspirador