Câncer planetário

Me entristeço quando ouço que nós somos o câncer planetário, que a Terra não precisa de nós e que ela ficará melhor sem a nossa presença. Embora reconheça a legitimidade dessa perspectiva, sinto um tremendo vazio, impotência e angústia quando me confronto com ela.

A Terra perderia muito se nos perdesse. A extinção humana seria uma enorme perda no processo evolucionário cósmico e planetário. Seria como retroceder centenas de milhares de anos no desdobramento sagrado da vida. Quando penso em uma era pós-humana não vejo Gaia se recuperando feliz e em paz. Vejo uma mãe despedaçada e esvaziada lamentando profundamente o curso dos fenômenos. 

De fato, a Terra não precisa de nós para existir. Saber disso nos exime da pretensão simplória de querer, com nossas mentes e mãos, salvar o planeta e proteger a vida do “mal” que há nas pessoas e nas instituições. Mas ela precisa de nós para experimentar inteireza. 

Nós somos, ao mesmo tempo, a parte e o todo, a célula e o organismo, a humanidade e a natureza. Nós somos cada árvore e toda a floresta, cada rio e todas as águas, cada pessoa e toda a humanidade. Nós somos a própria Terra.

Reconhecer que a nossa presença no planeta pode ser efêmera nos convida a um lugar maduro de onde podemos oferecer o que há de melhor em nós a partir de uma relação de alinhamento e pertencimento em vez de indiferença, controle e dominação. Mas não podemos fazer da nossa pequenez permissão para deixar de fazer o trabalho duro de transformarmos radicalmente quem somos e como participamos do mundo.

Por Gaia, não podemos desistir de nós. Ao aceitar o papel de “câncer planetário” não estamos sendo corajosamente realistas sobre a nossa condição. Ao contrário, estamos sendo ingenuamente covardes. Esse papel não nos cabe. Nós somos mais. Nós podemos mais. Nós significamos muito para este planeta vivo. 

Nós ancoramos em nossos corpos umas das inovações mais espetaculares já vistas. Através da consciência auto-reflexiva presente na humanidade, a Terra se descobre, se conhece, se expressa. Ela regozija a cada gesto compassivo e de celebração da vida e geme em dores de parto diante cada gesto humano nascido do medo e do ódio.

É desolador reconhecer a nossa imaturidade, irresponsabilidade e insanidade. Parece mesmo que nós nada sabemos sobre o valor intrínseco da vida. Mas, embora seja desesperador ver que estamos sacrificando os sistemas vivos e atentando contra a própria humanidade, nós precisamos ir além da raiva contra a condição humana. 

Ser humano não é isso. Ou, pelo menos, não é só isso. Nós ainda não somos humanos. Ser humano é um processo. É menos sobre ser do que sobre tornar-se. Infinitos e desconhecidos potenciais jaz em nossa humanidade. Nós podemos fazer deste planeta um lugar ainda mais vivo, belo, vibrante… e humano. 

Para tanto, nós precisamos, a partir de uma motivação informada pelo bem comum, descobrir as dádivas humanas singulares e fazer dessa descoberta sobre nós mesmos um motivo para nutrir ativamente a esperança.

“A aparição da humanidade constituiu uma grande oportunidade para Gaia. […] Somos, de certa forma, seu sistema nervoso. Em todo caso, é graças a nós que ela de algum modo tomou consciência de si mesma e inclusive conseguiu se ver a partir do espaço exterior. Ela perderia muito se nos perdesse.” — James Lovelock

Foto: Ernst Götsch manejando agrofloresta na Fazenda Olhos D’Água, Bahia, por Fernando Martinho.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

2 comments

Carolina Steiner

Lindíssimo texto, Ju! Parabéns e gratidão!

Juliana Diniz

Grata Carol! Feliz com o seu retorno =)

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