Descolonizar a comunicação

E se em vez de usar “mas”, “na verdade”, “efetivamente” e outras expressões que reivindicam para si a exclusividade da legitimidade, nós usarmos “e”, “além disso”, “também” e outras expressões que, em vez de criar oposição, somam perspectivas?

O uso das expressões “de fato” e “realmente” quando afirmamos algo e do “na realidade” quando estamos nos contrapondo nascem da premissa de que só um pode estar correto e, portanto, só um tem o acesso à verdade e validade na exposição de seus argumentos.

Quando escutamos o que o outro tem a dizer ativa e profundamente e ao final da sua fala queremos expor uma perspectiva que se difere da dele, podemos começar por: “te ouvindo, me surge que”, “além do que você trouxe, eu penso que” ou “em um sentido diferente do que você expôs, eu entendo que”. 

Assim, está implícita a ideia de que diferenças não precisam ser antagonizadas e que diferentes perspectivas podem, mesmo divergindo em sentido, revelar faces de uma realidade mais ampla. O “real” é sempre maior do que um ponto de vista que, inclusive, é a vista que a visão alcança de um apenas e restrito ponto.

No artigo O nativo relativo, Viveiros de Castro narra uma cena presenciada por seu colega Peter Gow em uma de suas estadas entre os Piro da Amazônia peruana:

“Uma professora da missão [na aldeia de] Santa Clara estava tentando convencer uma mulher piro a preparar a comida de seu filho pequeno com água fervida. A mulher replicou: ‘Se bebemos água fervida, contraímos diarréia’. A professora, rindo com zombaria da resposta, explicou que a diarréia infantil comum é causada justamente pela ingestão de água não-fervida. Sem se abalar, a mulher piro respondeu: ‘Talvez para o povo de Lima isso seja verdade. Mas para nós, gente nativa daqui, a água fervida dá diarréia. Nossos corpos são diferentes dos corpos de vocês’.”

A mulher ocidental reivindica para si o monopólio da verdade a partir da premissa e reforçando a ideia de que há uma única verdade funcionando universalmente. A mulher indígena implicitamente expressa que o que vale na cidade, para os corpos habitantes da cidade, não se aplica na aldeia, para os corpos do povo piro, sem desvalidar a verdade da mulher ocidental. A mulher indígena traz a sua perspectiva a partir do seu contexto ao usar o “aqui” sem fazer guerra e pretender a universalidade da sua verdade.

Tomar como certo que a nossa experiência é restrita e, portanto, as nossas perspectivas são limitadas e usar “a partir do meu contexto/experiência, eu vejo que” para expor divergências é uma boa maneira de começar a descolonizar a comunicação.

Ao trabalhar com projetos de base territorial e comunitária, e mesmo ao facilitar grupos e equipes, precisamos nos engajar em um trabalho de descolonização do próprio imaginário e comportamento. A riqueza dos diversos modos de se relacionar e dos plurais hábitos de existência tem sido desperdiçada. Um caminho humano mais promissor, tanto do ponto de vista da micropolítica cotidiana quanto do curso civilizatório, envolve admitir a preciosidade das experiências superdiversas de tantos outros e fomentar uma ecologia de saberes que celebra a alteridade.

Não é só sobre criar espaço para que o diferente seja e se expresse, mas sobre energizar o potencial revelado por cosmovisões e modos de vida que provocam os nossos próprios e, por isso, nos apresentam maneiras de ser e estar no mundo desconhecidas e, tão logo, potencialmente transformadoras.

Referência

Eduardo Viveiros de Castro (2002). O nativo relativo. Mana, 8(1), 113-148.

Foto: Mulher e crianças do povo Manchineri, parente do povo Piro, por Tony Gross em 1979.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

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