A partir das críticas ao desenvolvimento econômico e desenvolvimento sustentável feitas pelas abordagens do decrescimento, do pós-desenvolvimento e do bem viver, o texto problematiza o entendimento economicista de desenvolvimento e apresenta uma outra perspectiva para este conceito à luz da natureza de desenvolvimento presente em sistemas vivos.
Em uma perspectiva genérica, desenvolvimento econômico é o processo pelo qual ocorre uma variação positiva tanto das variáveis quantitativas quanto das variáveis qualitativas da economia.
Por variáveis quantitativas entenda o aumento da capacidade produtiva de uma economia medida por indicadores como o PIB — isso é o mesmo que crescimento econômico. Por variáveis qualitativas entenda as melhorias na qualidade de vida, educação, saúde, infraestrutura e mudanças da estrutura socioeconômica de uma região medidas por indicadores sociais como o IDH. Essa dimensão qualitativa da economia é o que adiciona o aspecto de desenvolvimento ao crescimento econômico.
Desde a década de 1970, o conceito de desenvolvimento vem sendo reformulado com a intenção de produzir mudanças nos regimes econômicos sem esgarçar a direção de uma sociedade global de crescimento industrial. A noção de desenvolvimento sustentável faz parte da ressignificação de um projeto civilizatório cujas bases cosmológicas, ocidentais e modernas, não foram revisadas.
O desenvolvimento sustentável foi bem-sucedido em ser absorvido por programas institucionais e governamentais, mas ele está muito mais no campo da retórica do que da efetividade em “possibilitar às pessoas atingir um nível satisfatório de desenvolvimento social e econômico e de realização humana e cultural, fazendo um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais” tal como foi definido no Relatório Brundtland, em 1987, pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas.
Ao longo dos anos, a preocupação com os limites da natureza e com as necessidades das gerações futuras que estava no centro do discurso oficial do desenvolvimento sustentável mostrou-se falaciosa. E naturalmente percebeu-se a impossibilidade de coexistência de um modelo econômico baseado em um sistema de consumo em massa com a sustentabilidade dos sistemas de suporte à vida e o enfrentamento da injustiça social.
Com a solidificação dessa percepção, as objeções ao crescimento econômico estenderam-se ao desenvolvimento sustentável. São inúmeras as críticas não só aos modelos de desenvolvimento social e econômico como à própria noção de desenvolvimento.
Decrescimento e pós-desenvolvimento
Pós-desenvolvimento, decrescimento sustentável, relocalização econômica são algumas das abordagens que sugerem meios para superar as limitações intrínsecas à ideia de desenvolver associada à ampliação da capacidade científica-técnica-industrial de extrair recursos, produzir coisas e incentivar o consumo.
Da perspectiva do decrescimento sustentável, desenvolvimento é visto como a ideia organizadora do paradigma da economia capitalista globalizada em que a globalização ocidental é entendida como a fase mais avançada do capitalismo e a responsável pelo aprofundamento da desigualdade social e da crise ecológica.
Crítico ao economicismo, à racionalidade instrumental e à ocidentalização do planeta, Latouche é figura central da corrente do decrescimento sustentável e na elaboração do conceito de pós-desenvolvimento. Segundo Latouche (2012), o conceito de decrescimento baseou-se primeiramente na ideia de que viveríamos melhor de outra maneira a partir da crítica antropológica da modernidade e do homo economicus, e depois tomou como imperativo o desinvestimento total na economia neoclássica e capitalismo global.
Influenciada pelo relatório Limites ao crescimento, de 1972, comissionado pelo Clube de Roma, a tese do decrescimento baseia-se na hipótese de que uma economia que se fundamenta no aumento constante do PIB não é sustentável porque ameaça a saúde dos ecossistemas do planeta, e tampouco implica melhoria da qualidade de vida. No relatório, modelos matemáticos concluem que o planeta não suportaria o crescimento populacional devido à pressão gerada sobre os recursos naturais e energéticos e ao aumento da poluição, mesmo tendo em conta o avanço tecnológico. Daí decorre a tese de que o objetivo permanente de crescimento produtivo sobre recursos naturais limitados é impossível e que a melhoria das condições de vida deve ser obtida por outras vias que não do aumento do consumo.
Da perspectiva do decrescimento, o desenvolvimento sustentável é contraditório em seus próprios termos já que o desenvolvimento não pode ser sustentável se ele implica aumento constante da produção de bens e serviços que, por sua vez, provoca aumento do consumo de recursos naturais. Junto a esse argumento, é central a ideia de que o PIB é uma medida parcial da riqueza inapropriada para medir a saúde socioeconômica.
Confrontando as contradições do desenvolvimento sustentável, o decrescimento propõe a redução dos níveis de produção e consumo e a utilização de outros indicadores como IDH, pegada ecológica, Índice de Saúde Social e outros, a fim de preservar a integridade dos ecossistemas e a dignidade das pessoas ampliando o bem-estar de forma equitativa e as condições ecológicas no planeta.
De modo geral, as perspectivas críticas ao regime econômico dominante nutrem uma visão de futuro em que as sociedades operam dentro das suas possibilidades e restrições ecológicas, com economias abertas e localizadas com distribuição justa de recursos, através de novas formas de instituições democráticas. Contra-paradigmaticamente é sugerido que o fetiche da acumulação de bens materiais e da inovação tecnológica como salvação para os problemas contemporâneos seja substituído pela busca por suficiência e criação de novas organizações sociais e técnicas que nos permitam viver em convívio e frugalmente.
Bem viver
Quanto mais percebemos a insustentabilidade do modo de vida moderno e das atividades produtivas industriais, mais os hábitos de existência e de convivência assentados em ontologias outras são destituídos da condição de subalternidade e reconhecidos como experiências humanas de sucesso e fonte de aprendizado para o imaginário colonizado do mundo ocidental.
O sumak kawsay (kíchwa), o suma qamaña (aymara), o nhandereko (guarani) e o noflay (wolof) são modos de vida onde as atividades humanas estão enraizadas na conviviabilidade do mundo humano com o mundo-mais-que-humano onde alguma simetria de poder e reciprocidade entre extrair e oferecer são asseguradas na prática cotidiana porque contempladas nas cosmovisões e éticas destas comunidades.
Embora não se deva generalizar modos de existência tão diversos, talvez se possa dizer que em comum eles têm o fundamento de uma boa vida, um bem viver, que acontece em escala humana, de forma comunitária e com relações de produção autônomas (Acosta, 2016). E, assim, são essencialmente diferentes do “viver melhor” ocidental cuja direção de desenvolvimento está associada a uma mobilidade social impossível de acontecer em sociedades que se movem através de regimes coloniais e usos exploratórios e desiguais da natureza.
Envolvimento sustentável
Virgílio Viana (1999) diz que “des-envolver para as populações tradicionais significa perder o envolvimento econômico, cultural, social e ecológico com os ecossistemas”. Ele resgata o significado da palavra desenvolver no dicionário Michaelis onde desenvolver é equivalente a tirar o envólucro, descobrir o que estava encoberto, enquanto que envolver significa meter-se num envólucro, comprometer-se. Apoiado na perspectiva de um artista caiçara que descreve o processo de desenvolvimento do povo caiçara com seu território tradicional produzido pela construção da estrada Rio-Santos nos anos 70 em Paraty, ele entende desenvolver como a antítese de envolver.
Combinando o significado do dicionário com a perspectiva do artista caiçara e o reconhecimento dos prejuízos absurdos decorrentes da ausência das populações tradicionais em planos de manejo de unidades de conservação e de projetos de desenvolvimento dentro e no entorno de seus territórios ancestrais, ele conclui que desenvolver uma pessoa ou comunidade significa retirá-la do seu invólucro ou contexto ambiental; descomprometê-la com o seu ambiente.
Desenvolvimento como princípio da vida
Para enriquecer essa discussão com uma perspectiva que vem de um corpo de conhecimento diferente dos que foram citados acima, quero apresentar a noção de desenvolvimento entendida como um princípio de funcionamento dos sistemas vivos. Da perspectiva da regeneração, influenciada pela ciência dos sistemas vivos, é entendido que todos os sistemas vivos têm a capacidade e a direção de se desenvolver, isto é, de expressar mais de quem são e do que têm potencial para se tornar (Regenesis, 2016 e Sanford, 2020).
O grupo Regenesis resgata a origem etimológica de desenvolvimento no francês antigo (desveloper) em que desenvolvimento significa desembrulhar, desempacotar, desvelar, retirar o invólucro ou revelar o significado ou o sentido de algo. E aponta, em um sentido diferente do sugerido por Viana, que desenvolver está relacionado a um processo contínuo e consciente de retirar o manto para revelar a verdadeira natureza das coisas.
Partindo desse entendimento, o Regenesis diz que desenvolvimento é sobre a capacidade de um sistema vivo — em relação à sua vontade, ser e função — viver integralmente a sua essência. Carol Sanford (2020) sugere uma definição semelhante ao dizer que desenvolvimento é o meio através do qual a essência de um sistema vivo se torna cada vez mais capaz de revelar e expressar a si mesma como potencial.
A capacidade de um sistema, entidade ou atividade expressar sua essência é um processo contínuo com desdobramentos múltiplos ao longo do tempo. Dessa forma, a ideia de retirar o manto está relacionada não só à revelação da essência como também à realização de potenciais singulares onde o desenvolvimento é fundamental para se chegar à realização desses potenciais. O que se quer desenvolver é justamente as capacidades necessárias para a realização de potenciais de ordem superior de valor.
Para favorecer a realização de um potencial singular que possibilita um sistema vivo gerar novo valor e perseguir novos fins é necessário o trabalho anterior de cultivo de condições e construção de capacidades. Desenvolver significa, portanto, cultivar condições e construir capacidades que favoreçam a emergência de um novo potencial. As capacidades construídas movem o sistema para um novo nível que permitirá buscar novos fins. Em síntese, um sistema vivo em desenvolvimento constrói capacidades que o elevam a uma nova condição onde mais da própria essência foi revelada e novos potenciais podem ser percebidos e alcançados.
Um passo a mais na definição de desenvolvimento é o de compreender que a construção de capacidades para a realização de potenciais singulares deve ser orientada pela direção de aumentar a vitalidade, viabilidade e capacidade para evolução em um todo integral e singular (Regenesis, 2016). Sendo assim, a motivação subjacente para o desenvolvimento de uma comunidade, negócio ou ecossistema deve ser a de ajudá-los a evoluir em sua trajetória evolutiva sentido maior vivacidade, habilidade transacional e aptidão para atravessar mudanças.
Que natureza de desenvolvimento faz sentido?
Na discussão sobre desenvolvimento é certo que perspectivas e regimes de desenvolvimento que não romperam com o colonialismo, crescimentismo, industrialismo, produtivismo, consumismo e utilitarismo amarrados ao neoliberalismo são incapazes de responder aos desafios do nosso tempo — para citar apenas dois, a retirada da alma das coisas e os limites planetários que seguimos perigosamente ultrapassando.
Ao acolher as provocações feitas pelas correntes do decrescimento, pós-desenvolvimento e pela associação de desenvolvimento com não-envolvimento faz sentido questionar a pertinência da noção de desenvolvimento e nos perguntar o quão pervertido, desqualificado e irrecuperável ele é. No entanto, a ciência dos sistemas vivos nos mostra que o abandono, a indiferença ou o fechamento total à noção de desenvolvimento pode nos fazer negar um princípio estruturante de funcionamento da vida que, se considerado, nos ajuda a participar de processos vivos e projetar iniciativas de forma esclarecida.
Se considerarmos que todos os sistemas vivos têm a capacidade e a direção de se desenvolver e que pessoas, organizações, comunidades, territórios etc. se comportam como sistemas vivos, devemos nos perguntar como viabilizar e favorecer os seus processos de desenvolvimento. A direção de florescimento da vida e desdobramento da essência conferida ao desenvolvimento em sistemas vivos, isto é, o sentido de aumentar vitalidade, viabilidade e capacidade para evolução é uma bússola que, radicalmente diferente de indicadores como o PIB, nos ajuda a permanecer fortemente ancorados na sustentação e regeneração da vida.
Referências
Alberto Acosta. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Autonomia Literária, Elefante, 2016.
Carol Sanford. The Regenerative Life: Transform any organization, our society, and your destiny. Nicholas Brealey Publishing, 2020.
Pamela Mang, Ben Haggard e Regenesis Group. Regenerative Development and Design: A Framework for Evolving Sustainability. Wiley, 2016.
Serge Latouche. Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. Edições 70, 2012.
Virgílio Viana. Envolvimento sustentável e conservação das florestas brasileiras. Ambiente & Sociedade, II, 5, 1999.