A regeneração como um nível de trabalho

Existem quatro naturezas de trabalho que todo sistema vivo — seja um organismo biológico, organizações humanas, territórios ou pessoas — deve desempenhar constantemente para se manter viável e próspero no ambiente dinâmico e complexo a que pertence.

Formulado pelo consultor organizacional Charles Krone na década de 70, o quadro conceitual Ordens ou Níveis de trabalho descreve essas diferentes naturezas de trabalho. O quadro se apoia no pensamento sistêmico e no trabalho de David Bohm.

Os níveis de trabalho inferiores, operar e manter, focam em aspectos da existência, isto é, no que já existe hoje. Os níveis superiores, aprimorar e regenerar, focam em aspectos potenciais, ou seja, no que existe mas ainda não foi manifestado.

Este quadro permite construir uma visão sistêmica e integral do sistema observado e projetar suas atividades e objetivos a partir de uma integração consciente de todos os níveis de trabalho. Em um sistema complexo evolutivo, o nível regenerar funciona como um guia para os demais permitindo que o sistema como um todo evolua em harmonia com o seu ambiente.

Segundo o Regenesis (2016), um grupo de consultores que têm esse quadro como fundamento da metodologia que desenvolveram (o Desenvolvimento e Design Regenerativo), este quadro nos ajuda a perceber como um sistema integral constrói continuamente a capacidade de gerar valor, a partir do seu potencial inerente, aos sistemas maiores a que pertence.

 

Quadro conceitual “níveis de trabalho” formulado por Charles Krone

Operar

O nível operar busca fazer as coisas melhor. Operar bem significa aumentar continuamente a eficiência dos processos que possibilitam que o objetivo de um sistema seja alcançado. É sobre aumentar a capacidade de um sistema manter uma relação harmoniosa com aquilo ou aqueles que recebem o que ele produz.

De maneira geral, cada sistema tem uma operação principal, seja ele uma fábrica, um território ou uma prática profissional. A operação é o serviço que se presta, o papel que se desempenha ou aquilo que se produz. Trabalhar nesse nível significa buscar oportunidades de otimização em todas as relações de troca existentes.

Percebemos projetos de sustentabilidade trabalhando neste nível quando estão focados no aumento de eficiência energética e melhor uso de materiais, trabalhando para encurtar as distâncias da cadeia de suprimento ou para eliminar variáveis como toxicidade e rejeitos. Historicamente, este é o principal objetivo de projetos em sustentabilidade tecnológica — ganho de eficiência nas operações.

Para compreender a qualidade de operação de um sistema, pergunte-se:

  • Qual a operação principal deste sistema? O que ele recebe, o que ele processa e o que ele entrega ao mundo? Qual o seu objetivo?
  • Descreva esta operação dando ênfase nas suas relações.
  • Onde está a oportunidade para melhoria, aprendizado e desenvolvimento?

Operar bem é tão importante quanto os demais níveis. Acontece, no entanto, que estamos acostumados a focar excessivamente nesta natureza de trabalho em detrimento das demais. Trabalhar nos próximos níveis abre a possibilidade de realizar potenciais de ordem superior.

Manter

Trabalhar no nível manter significa preocupar-se em sustentar os efeitos desejados e a eficiência das operações frente a perturbações e incertezas iminentes. É sobre desenvolver habilidades para gerir a evolução em resposta a mudanças inesperadas. O que é feito para aumentar a resiliência de um sistema está associado a este nível.

O princípio da redundância, da permacultura, exemplifica uma diretriz de design associada a este nível ao enunciar que “cada necessidade vital deve ser atendida por múltiplas fontes distintas”.

Cidades que instalam infraestrutura úmida como jardins de chuva, bacias de retenção e pavimentos permeáveis, junto a um bom sistema de drenagem, são mais resilientes e capazes de manter suas operações comerciais e de tráfego diante de eventos extremos de chuva.

Essas estratégias estão associadas ao nível manter e buscam garantir a viabilidade de um sistema diante perturbações severas. Ao olhar para este nível de trabalho em um sistema, você pode se perguntar:

  • O que confere viabilidade a este sistema? Como expandir e fortalecer suas fontes de viabilidade?
  • Quais eventos de ruptura este sistema já atravessou? O que isso nos diz sobre a sua resiliência?
  • Como fortalecer as bases deste sistema para que ele fique mais apto a enfrentar mudanças inesperadas?

No âmbito pessoal, investir no desenvolvimento de inteligência socioemocional, conhecimentos e habilidades gerais e organização financeira, por exemplo, são trabalhos neste nível pois torna a pessoa mais apta a atravessar rupturas e desempenhar diferentes funções frente a um cenário de mudança.

Em síntese, toda capacidade desenvolvida que contribua para a continuidade das operações do sistema em questão frente a mudanças abruptas e profundas, das quais não se possui controle, está associada ao nível de trabalho manter.

Aprimorar

Aprimorar, como um nível de trabalho, é sobre fazer melhores coisas no lugar de fazer as coisas melhor. É sobre reavaliar as premissas e crenças que trouxeram um dado sistema até o seu estado atual e buscar por mudança a partir de um conjunto novo de opções.

A partir deste nível deixamos de trabalhar no campo da existência e passamos a trabalhar no campo do potencial, ou seja, daquilo que pode vir a ser mas ainda não foi manifestado.

O trabalho neste nível busca aumentar a capacidade do sistema desempenhar sua função a partir da inovação. Aqui está uma oportunidade para re-imaginar e re-desenhar todo o processo gerador de valor do sistema de modo que ele se atualize e incorpore novos processos e práticas.

Ao refletir sobre a capacidade de aprimoramento de um sistema, considere:

  • Se a operação deste sistema estivesse começando hoje, o que você faria diferente?
  • Quais outras possibilidades de atuação alinhadas com o propósito original deste sistema você consegue identificar?
  • Onde está e como cultivar espaço para o novo?

Use estas perguntas como um ponto de partida na sua investigação.

Regenerar

O nível regenerar é sobre reconhecer a trajetória percorrida e as capacidades desenvolvidas em um dado sistema e se perguntar: a partir do estágio de desenvolvimento e contexto atual, qual é o próximo estágio de evolução deste sistema?

A evolução em sistemas vivos se dá a partir de ciclos de alta vitalidade e baixa vitalidade, ciclos de realização e de transformação. O trabalho no nível regenerar fortalece os pulsos de transformação ao nos lembrar do nosso lugar e escala de atuação.

Para deixar este trabalho real e concreto, sempre pensamos a regeneração de um sistema a partir do seu relacionamento com o lugar a que pertence. Mais especificamente, a partir do aprimoramento da sua contribuição singular para o aumento da saúde integral do lugar em que se está.

A regeneração acontece, portanto, a partir de uma relação de reciprocidade onde um sistema vivo realiza um papel singular capaz de gerar saúde e vitalidade para o sistema em que está inserido e é, assim, beneficiado pelas condições de saúde deste sistema maior.

Para tanto, é necessário olhar não apenas para como o sistema funciona, mas também para quem ele é. A busca por tocar e realizar potencial de ordem superior implica revelar e trabalhar a partir do que é essencial no sistema. Quais as características únicas deste sistema? O que lhe é singular e distintivo?

A investigação a respeito da essência considera a condição presente e futura de um sistema ou organismo vivo. Além de nos perguntarmos “quem este sistema é?”, nos perguntamos também sobre quem ele quer ser. Qual o seu papel único no mundo e o que ele é chamado a ser e ainda não está consciente disso? Como usar o reconhecimento de quem um lugar é, por exemplo, para despertar o seu potencial?

Quando a essência de um lugar e de uma organização ganha vida e informa o papel que uma iniciativa pode vir a desempenhar no mundo, temos uma chance de estarmos envolvidos em um trabalho regenerativo.

Assim, a regeneração gera uma direção a partir da qual o trabalho de todos os outros níveis se integram e se complementam. Dessa forma, somos capazes de trabalhar com sistemas em sua integralidade e tocar potenciais de ordem superior.

Os quatro níveis de trabalho devem ocorrer simultaneamente

A falha em realizar bem os dois primeiros níveis de trabalho, operar e manter, mesmo trabalhando os dois níveis acima da linha de expressão, aprimorar e regenerar, pode facilmente ameaçar a própria existência da entidade devido à incapacidade funcional e organizacional (Regenesis, 2016).

Executar bem os dois primeiros níveis mas negligenciar os dois últimos é tão perigoso quanto. O trabalho em operar e manter lida apenas com o que já existe e, por isso, é governado pela entropia. Focar toda a energia na tentativa de controlar a desordem bloqueia a evolução e torna impossível frear ou contornar o gradual esgotamento e degradação material, psíquica e espiritual (Mang e Reed, 2011).

Por isso, o Regenesis (2016) adverte:

“Estabeleça metas que abordem tanto o existente quanto o potencial. É importante diferenciar entre objetivos que pertencem a diferentes níveis, e as diferentes naturezas de pensamento que eles exigem. Metas que tratam da eficiência operacional ou da manutenção da resiliência em um ambiente em mudança apenas nos permitem melhorar a função do que já existe. Metas que regeneram e aprimoram sistemas integrais evocam uma nova qualidade de ser ao manifestar o seu potencial inerente. Os objetivos são importantes em todos os níveis, mas os objetivos funcionais de curto prazo devem ser considerados apenas para apoiar os objetivos evolutivos de longo prazo, e nunca devem ser colocados em oposição a estes.”

Em um mundo em contínua transformação, a evolução deveria ser a nossa principal preocupação. Projetos com a aspiração de serem sustentáveis ou regenerativos deveriam ser os meios de atender a essa preocupação (Mang e Reed, 2011). Para tanto, é fundamental um envolvimento completo e harmônico dos projetos, organizações e comunidades com os quatro níveis de trabalho que acontecem simultaneamente em sistemas vivos.

Referências

Pamela Mang e Ben Haggard. Regenerative Development and Design: A Framework for Evolving Sustainability. Wiley, 2016.

Pamela Mang e Bill Reed. Designing from place: A regenerative framework and methodology. Building Research and Information, 2011.

Foto: Jeremy Bishop

Posted by Felipe Tavares

Trabalho para conciliar o desenvolvimento social com a inteligência dos sistemas vivos. Acredito que a sustentabilidade começa com uma mudança de pensamento e não de técnicas.

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