Atravessando o colapso em conexão com a vida
Desde o ano passado muitas tragédias atravessam nossas vidas. Avanço de governos anti-progressistas, escalada de tensão entre regimes imperialistas, crises políticas em toda a América Latina, crimes ambientais no Brasil, gravíssimos incêndios na Amazônia brasileira e em savanas por todo o globo, aceleração das mudanças climáticas e recordes de calor — só para citar alguns.
Eventos de ordem política, social e ecológica continuamente nos tiram do aparente conforto individualista e evidenciam a complexidade da nossa natureza interdependente.
E agora uma pandemia — de alguma forma previsível, mas totalmente negligenciada — muda os nossos hábitos, nos faz suspender premissas nunca questionadas, corporificar princípios até então abstratos, experimentar emoções que tanto evitamos e confrontar verdades desconcertantes.
De repente, um mundo orientado pelo reducionismo e pelo modo resolvedor de problemas, se vê obrigado a olhar sistemicamente e a abraçar a complexidade. O alcance global em tão pouco tempo da pandemia evidencia a limitação do enfoque exclusivista da fragmentação e da linearidade na tomada de decisão.
De repente, um mundo cujos modelos de governança são orientados por modelos de comando e controle se vê obrigado a colaborar e a compartilhar. A colaboração internacional é questão de vida ou morte não só de economias, mas de milhões de pessoas.
De repente, um mundo colonial construído sobre a indiferença ao outro tem a sua desumanidade escancarada. Os desinvestimentos em serviços públicos têm os seus efeitos evidenciados. E os privilégios de poucos se contrastam dramaticamente com as desvantagens de muitos.
De repente, um mundo cuja direção é o crescimento econômico infinito se vê no limiar de uma recessão econômica. E, para muitos, conter danos à saúde humana é menos importante que crescer lucros.
De repente, um mundo cujo tempo e relações são ditados pela máxima “correr, produzir, consumir e descartar” se vê imobilizado. Não há para onde ir. Não há por que consumir. Finalmente, as relações humanas deixam de ser o pano de fundo das nossas vidas, sobressaem em relação às interações comerciais e revelam a sua importância e sacralidade.
De repente, um mundo onde as pessoas são movidas pela conquista pessoal se vê assolado por múltiplas falências individuais. Em cenário de tragédia coletiva, algumas contradições se reconfiguram. O auto-interesse se misturou completamente com o cuidado do outro e com responsabilidade social.
A parada, a introspecção e a reflexão que tanto relutamos em fazer quando estamos desesperados e correndo, de repente, é uma ordem.
Mas talvez isso não esteja acontecendo tão de repente assim.
Há décadas a insustentabilidade da civilização moderna e do capitalismo corporativo é conhecida. As fronteiras planetárias ultrapassadas, os índices crescentes de desigualdade social e a generalização de casos de suicídio há muito tempo nos convidam a parar e refletir sobre a nossa desconexão com a vida.
Mas desesperados e correndo não conseguimos mudar.
É curioso que a mudança precise tanto de um estímulo disruptivo quanto de calma interior.
A necessidade de mudança é percebida através de algo que nos abale o suficiente para engajar a vontade na superação de pensamentos restritivamente cristalizados e comportamentos disfuncionais.
A concretização da mudança passa por um estado de relaxamento em que o estímulo é aceito e interiorizado. Se isso não acontece, continuamos lutando e fugindo como presas ameaçadas diante a percepção do estímulo disruptivo — o convite da mudança.
Agora estamos desesperados e parados. A necessidade de mudança é percebida. E a interiorização é inevitável.
A metáfora da mãe que bota o filho pré-adolescente de castigo depois de um ato de irresponsabilidade parece muito apropriada. Parece mesmo que Gaia quer fazer parar seus filhos adolescentes. E nos fazer rever rotas e princípios.
Mas antes de refazer nossas intenções e estabelecer novos hábitos, precisamos superar a resistência e a revolta com o castigo.
Antes de qualquer resposta, precisamos metabolizar a reação emocional frente ao caos global — seja ela de raiva, tristeza, desespero, resignação, negação ou o que for. As emoções precisam de tempo para cumprir sua função em nós. O luto merece ser vivido dignamente.
Essa é a condição que nos leva à calma interior de onde nascem respostas compassivas, inteligentes e criativas.