A relação “ser humano e Terra” e uma agenda de princípios orientadores para a era ecológica devem ter centralidade hoje
Essa sequência de três textos intitulados “A era ecológica” é inspirada pelas reflexões de Thomas Berry no livro “O sonho da Terra”. Ele é considerado um dos grandes nomes do pensamento ecológico. Exerceu os ofícios de sacerdote católico, historiador cultural, eco-teólogo e gostava de ser referido como cosmólogo e acadêmico da Terra.
Com um olhar profundo podemos perceber que todos os problemas sociais advém dos problemas da relação “ser humano e natureza”. O ímpeto por colonizar, dominar, explorar, dessubjetivar e desumanizar que se manifesta entre nós tem suas raízes na relação com a Terra.
E a menos que possamos sustentar a vida em Gaia, não poderemos buscar resoluções para as questões políticas, sociais e econômicas. Por isso, na era ecológica, a relação “ser humano e Terra” deve ter centralidade.
Essa percepção deve nos levar à construção contínua de uma nova visão de mundo baseada na ética da vida e do cuidado de modo que, assim, possam emergir novos jeitos de se relacionar entre humanos e com a Terra.⠀
A centralidade da relação “ser humano e Terra” e as quatro formas de encará-la
Podemos ver quatro tipos de respostas aos problemas oriundos da relação “ser humano e Terra” a partir de quatro grandes grupos: grandes empresários, ativistas sociais e humanistas, ativistas ecológicos e curadores da Terra.
A resposta dos grandes empresários é orientada por uma obstinação na ideologia do progresso contínuo, da melhoria da condição humana mediante processos científico-industriais. Esse grupo é incapaz de perceber as perturbações humanas no meio ambiente. Ele vê na intensificação dos padrões de produção e consumo, através do processo industrial, o caminho para o futuro. Desse ponto de vista, a resolução de novos problemas se dá com uma mentalidade e técnicas antigas próprias de um fundamentalismo industrial-tecnológico. Esse grupo tem o controle sobre os recursos da Terra, sobre os hábitos de consumo, sobre os arsenais bélicos e sobre o poderio destrutivo do ser humano.
Outra resposta para os problemas da relação “ser humano e Terra” advém de uma abordagem humanista, das críticas sociais e humanísticas à técnica. Esse grupo lidera o movimento a favor dos direitos humanos e sociais e da superação da desigualdade social característica das sociedades de classes. Ele está atento às consequências sociais dos processos industriais-tecnológicos e entende que a dominação do processo tecnocrático sobre a biosfera e a esfera psíquica produziu uma profunda desvitalização e desumanização da vida. Apesar das críticas sociais e humanísticas dos partidos socialistas e líderes trabalhistas, a sua atuação, geralmente, não abarca os danos ecológicos da modernidade.
Um terceiro grupo, de ativistas ecológicos, responde a essa questão buscando a integridade da natureza através da crítica contundente à sociedade industrial-tecnológica e aos danos, por ela causados, aos sistemas vivos. Esse grupo compartilha da crença de que a espécie humana é parte da comunidade viva maior e que é preciso estabelecer laços mutuamente enriquecedores dentro dela para o crescimento humano ser possível. A sua grande bandeira é a defesa e instituição de uma norma biocêntrica de realidade que assegure o direito à existência de todos os seres.
Por fim, tem-se o grupo engajado na cura da Terra através do desenvolvimento de programas alternativos que promovam modos mais funcionais de produzir alimento e energia. Apesar de compartilhar com o terceiro grupo da adoção de métodos de confronto direto contra a devastação dos sistemas vivos, este grupo está concentrado em construir programas alternativos que redesenhe a presença humana na Terra como partícipe da manutenção da ecologia planetária.
Além da diferença filosófica, há uma diferença substancial entre esse grupo e o grupo dos empresários dedicados aos processos industriais degenerativos: a escala. Os curadores da Terra partem dos padrões locais para produção e distribuição de alimento, energia e recursos em geral fazendo uso de técnicas apropriadas e estilos de vida baseados em um desenvolvimento biorregional.
Agenda para uma era ecológica
Apesar de cada um desses quatro grupos cumprirem um papel social importante, o terceiro e o quatro grupo são os que conferem às dores de Gaia a centralidade apropriada. São eles que estão trabalhando para sanar os desequilíbrios ecológicos que ameaçam a sobrevivência e prosperidade humana no planeta. Eles têm liderado a agenda para a era ecológica.
Ao invés de programas específicos, Thomas Berry nos chama a cultivar uma agenda ecológica baseada em princípios básicos que devem orientar nossa ação individual e coletiva em prol do desenvolvimento das comunidades humanas em parceria com a evolução dos processos naturais da Terra.
Primeiro princípio: As técnicas humanas precisam funcionar em equilíbrio com as técnicas da Terra, com o jeito de proceder de Gaia.
Para isso, devemos renunciar à ética da conquista e da exploração e adotar uma ética de evocação das forças naturais e de cooperação com a ecologia planetária. Isso significa trabalhar com as forças espontâneas da natureza, e não contra elas, buscando a mais inteligente maneira de o ser humano atuar no seu contexto.
Segundo princípio: Precisamos nos preocupar com a ordem de grandeza das mudanças que se tornam necessárias.
Muito do nosso desengajamento em relação às dores do mundo, às injustiças sociais e ecológicas, nascem da angustiante constatação de que esses problemas são por demais complexos. Diante da necessidade de assumir a complexidade e uma abordagem sistêmica em busca de soluções eficazes e elegantes acabamos cedendo à impotência e paralisia. No entanto, é crucial que aceitemos de peito aberto o desafio de encarar a relação “ser humano-Terra”, os efeitos da bolha industrial que criamos e o poder que nos cabe de decidir sobre a vida ou morte dos sistemas vitais do planeta.
Terceiro princípio: O desenvolvimento sustentável deve significar desenvolvimento para toda a comunidade terrestre e não apenas para os seres humanos.
Preservar espécies e habitats enquanto se foca em crescimento econômico não é suficiente para não comprometer o destino das gerações futuras. Apesar de ter como premissa a preservação do meio ambiente, o desenvolvimento sustentável, tal como é pensado e praticado hoje, reproduz uma norma antropocêntrica que centraliza as questões econômicas em detrimento das ecológicas e, além disso, garante direitos privilegiados àquelas corporações que se beneficiam diretamente do crescimento econômico.
Para que o desenvolvimento sustentável honre o seu nome e o movimento ecológico que lhe impulsionou é preciso que cada membro da comunidade de vida da Terra participe do processo de desenvolvimento e tenha seu direito à vida assegurado por uma norma biocêntrica.
Quarto princípio: Técnicas humanas devem tratar cuidadosamente os resíduos industriais.
A poluição das águas, terras e ar deve ser cessada desde já. Já temos ciência e tecnologia suficiente para fechar ciclos combinando os processos industriais com a regulação natural. A circularidade da economia deve estar a serviço do metabolismo ecossistêmico.
Quinto princípio: Precisamos de uma cosmologia funcional que nos propicie uma mística da Terra que, por sua vez, dirija a presença equilibrada do ser humano na ecologia planetária.
O primeiro passo nessa direção é assumirmos a coexistência das facetas psico-espiritual e físico-material no processo emergente do cosmos, da Terra, da vida e da consciência humana. Um sentido de reverência à inteligência cósmica e à inteligência de Gaia por parte dos cientistas e tecnólogos nos alavancará para uma nova era criativa cuja criatividade humana expressará propriamente o processo de autocriação e autorregulação da vida.
Sexto princípio: As técnicas devem desenvolver um papel defensivo. É necessário um princípio de precaução no contexto científico e industrial-tecnológico.
Adotamos estratégias degradantes na produção de alimento, energia, construção etc. porque temos uma percepção equivocada, própria de quem se percebe diferente e separado, de que a natureza é uma ameaça e, por isso, deve ser desalmada e conquistada. No entanto, os ataques que parecem vir da natureza são de natureza humana. É porque desmatamos que promovemos inundações, é porque cultivamos monoculturas que promovemos infestação de espécies resistentes, é porque comprometemos os ciclos naturais que sofremos os efeitos das mudanças climáticas.
Sétimo princípio: Adotar práticas e técnicas apropriadas para cada contexto biorregional.
A Terra apresenta suas próprias divisões funcionais. São essas divisões e suas formas vivas, chamadas biorregiões, que devem servir de base funcional comunitária. Assim, comunidades humanas e sistemas vivos suporte podem se apoiar mutuamente. A cultura biorregional pode então se tornar o elemento integrador entre comunidades humanas e sistemas vivos.
O biorregionalismo nos chama a desenvolver intimidade onde há afastamento, sensibilidade onde há mecanicismo e cura onde há destruição dos sistemas suporte da vida. Os povos indígenas e populações tradicionais são os grandes mestres do biorregionalismo. Eles constroem seus modos de vida e estruturas sociais orientados por uma cosmologia funcional e adaptados às condições locais de oferta de recursos e energia.
Esses são os sete princípios fundamentais de uma agenda para a era ecológica. Para implementá-la não podemos evitar a tarefa de superar os sentidos opacos e impenetráveis com os quais estamos acostumados a apreender o mundo. Conectar com o mistério da vida “que faz as estrelas se moverem pelos céus e a Terra a percorrer o ciclo das estações” (Berry, 1991, p. 81) é o pré-requisito para a grande virada de uma sociedade de crescimento industrial para uma sociedade que sustenta a vida.
Nesse sentido, a meta dos sistemas sociais (política, economia, ciência etc.) deve ser tornar-se expressão da celebração planetária. O critério para julgar o sucesso ou fracasso da humanidade é avaliar até que ponto nós participamos ativamente desse grande festival da vida.
Referências
Berry, Thomas. O sonho da Terra. Petrópolis: Vozes, 1991.