Entre histórias

“É tudo uma questão de histórias. Nós estamos em problemas agora porque não temos uma boa história. Nós estamos entre histórias. A velha história, e a forma como nos encaixamos nela, não é mais efetiva. Mas nós ainda não aprendemos a nova história.” — Thomas Berry

Sabemos que abaixo dos sintomas do mundo — da violência assistida contra a natureza, o outro e nós mesmos — há estruturas de organização, paradigmas de pensamento e estados de consciência particulares. Essa dimensão oculta do iceberg abarca as narrativas e histórias que nos orientam no mundo. Nós as reproduzimos inconscientemente e nos movemos através das crenças, valores e visão de mundo que elas informam e que nos foram introjetados desde que nascemos.

Joanna Macy, ecofilósofa e consagrada ativista socioambiental, identifica três versões da realidade que funcionam como lentes através das quais vemos o mundo. São elas: a narrativa dos negócios convencionais, a narrativa do apocalipse e a narrativa da grande virada. Embora sejam simplificações da realidade global, elas oferecem uma perspectiva útil sobre os valores e as crenças presentes no mundo atual.

Juntas essas narrativas compõe o cenário do mundo. Elas acontecem simultaneamente e se sobrepõem em muitos contextos. Conhecê-las enriquece, portanto, nossa compreensão das dinâmicas sociais, políticas e econômicas e nos permite fazer uma escolha consciente sobre qual destas lentes queremos usar e o quanto queremos nos comprometer com o avanço de uma ou de outra narrativa.

A narrativa dos negócios convencionais é a história que serve à sociedade de crescimento industrial que emergiu dos impérios coloniais europeus. Ela legitima a imposição de um sistema econômico capitalista predatório que perpetua o patriarcado e a supremacia ocidental a serviço do lucro desigual e a todo custo. 

As grandes corporações e as lideranças políticas anti-progressistas são os maiores porta-vozes dessa narrativa. Nos seus discursos é comum ouvirmos que não há necessidade de mudar a forma como vivemos e que o crescimento econômico infinito é a medida de sucesso. Através dessa lente, as recessões econômicas, a crise ecológica e as tensões sociais são vistas como dificuldades temporárias das quais a sociedade global é capaz de se recuperar e das quais as corporações podem, inclusive, se beneficiar. 

A narrativa do apocalipse é a história contada por cientistas, jornalistas e ativistas não cooptados ou intimidados pelos negócios convencionais. Ela toca aqueles que se sensibilizam diante as injustiças sociais e ecológicas e que metabolizam a sua indignação chamando atenção para o crescente colapso dos sistemas ecológicos, sociais e econômicos causados pela irresponsabilidade de governos e corporações. Ela está associada ao espírito de denúncia e rebeldia e sofre com a presença do desespero e da desesperança.

Essa narrativa é cada vez mais aparente por causa da acelerada degradação dos sistemas vivos e dos sistemas sociais devido a expansão de um modo exploratório de habitar o planeta sob a forma da globalização. Com o avanço da tecnologia dos meios de comunicação está cada vez mais evidente a desumanidade provocada pelo estabelecimento de monoculturas, minas e indústrias em territórios não-degradados causando intoxicação das pessoas e dos sistemas vivos e o empobrecimento das comunidades locais. 

As pessoas que usam essa lente para ver o mundo estão profundamente perturbadas com o avançar da sexta grande extinção de espécies; com os furacões, terremotos, inundações e incêndios florestais amplificados pelo aquecimento global; com a destruição de ecossistemas inteiros; com os milhões de pessoas sem abrigo, comida e água potável; com os refugiados encarcerados, escravizados e afastados de suas famílias; com as operações militares nacionais e internacionais violentas; com o racismo sistêmico e as intolerâncias étnica-religiosas… com o sofrimento humano e da Terra.

Há uma terceira narrativa que pode ser ouvida daqueles que recusaram sujeitar-se aos efeitos emocionais e práticos que a narrativa do apocalipse provoca. A narrativa da grande virada se constrói sobre a busca de respostas humanas criativas inspirada nas sabedorias ancestrais em direção à transição de uma sociedade de crescimento industrial para uma sociedade de sustentação da vida. Com essa lente aceitamos, de peito aberto, o desafio de regenerar sistemas vivos e humanos em vez de deles continuar extraindo recursos.

A narrativa da grande virada nos ensina que embora sejamos diversos povos sob situações muito diferentes de privilégios, somos uma só comunidade humana habitando um só planeta e, por isso, temos no reconhecimento de nossa interdependência e pertencimento mútuo a única possibilidade de sobrevivermos. Sob esta visão de mundo está a crença de que a superação das crises presentes está na capacidade de agirmos em solidariedade uns com os outros e em prol da vida na Terra.

Até pouco tempo assistíamos a supremacia da narrativa dos negócios convencionais. Ela era comumente aceita e pouco questionada. No entanto, com a aceleração de mudanças que tocam todas as áreas da vida humana e a convergência de crises políticas, sociais, econômicas e ecológica, a narrativa vigente se fragiliza e abre espaço para a emergência de uma nova história da humanidade.

Diversos pensadores se prontificaram a ser contadores dessas histórias. E, apesar de lhes darem nomes diferentes, eles apresentam enredos muito parecidos. Parece haver um consenso sobre a transição de uma velha história da humanidade para uma nova narrativa.

Essa é a primeira parte de uma sequência de cinco textos onde ilustramos essa transição de histórias a partir de complementares visões: Da sociedade de crescimento industrial à sociedade que sustenta a vida; Do Antropoceno ao Ecozóico; Da consciência ego-sistêmica à consciência eco-sistêmica; Da história da separação à história do interser.

[Este texto é parte do material de apoio da jornada Em busca da visão – propósito pessoal a serviço de Gaia]

Referências

Joanna Macy e Molly Young Brown (2004). Nossa vida como Gaia. Práticas para reconectar nossas vidas e nosso mundo. São Paulo: Gaia Editora.

Posted by Juliana Diniz

Através da conciliação entre desenvolvimento humano e social e a inteligência dos sistemas vivos, facilito processos de aprendizagem e transformação pessoal e coletiva que promovam a saúde planetária e protejam a memória biocultural da Terra.

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[…] de Massachusetts e co-fundador do Presencing Institute, também entende que vivemos um processo de transição de histórias e de consciências. Para ele, é fundamental e inevitável a aceleração de mudanças de paradigma […]

[…] e co-fundador do Presencing Institute, também entende que vivemos um processo de transição de histórias e de consciências. Para ele, é fundamental e inevitável a aceleração de mudanças de […]

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